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Fernando Ribeiro: "somos uma espécie de eremitas da opinião e do ego"

Os Moonspell estão de volta aos discos. O novo álbum chama-se "Hermitage" e é o décimo-terceiro da banda portuguesa. Leia aqui a entrevista a Fernando Ribeiro.

Fernando Ribeiro: "somos uma espécie de eremitas da opinião e do ego"
Rui Vasco



Os Moonspell lançam hoje o disco "Hermitage", o décimo-terceiro da banda veterana que no próximo ano vai celebrar 30 anos de carreira. 

O novo álbum foi gravado em outubro de 2020 nos Orgone Studios, Crawley, no Reino Unido, por Jaime Gomez Arellano (produtor de Paradise Lost e Ghost) que também foi o responsável pela mistura.

"Hermitage" - que em português significa "eremitério" - chega com o selo da Alma Mater Records, numa parceria internacional com a Napalm Records. Conversámos com Fernando Ribeiro sobre o disco que chega em dias de confinamento para apelar ao espírito de comunidade.


Como é que tens vivido estes tempos estranhos, este modo de sobrevivência à pandemia e este consequente sobressalto social? 

Tenho estado a fazer projetos para manter a cabeça ocupada. Todos os dias anseio por boas notícias, mas parece que quando chegam notícias nunca são boas. Acho que se romantiza muito quando se diz que há mais tempo para se estar em família e com os filhos. Para isso arranja-se sempre tempo. A verdade é que, apesar de estar bem de saúde, estou praticamente no desemprego. (risos) Embora tenha um disco novo a sair, sinto-me um bocado desorientado no meio de tantas opiniões, da falta de critérios. Às tantas, já não sei se podemos ou não sair ao fim de semana. (risos) É por isso que opto por ficar em casa. Confesso que já me começa a faltar a paciência. Quero muito partir para outra, embora saiba que isso não depende só de mim, depende de todos os que se queiram juntar. Este segundo confinamento tem sido terrível. Acho que, no meio de tudo o que estamos a viver, não podemos estar sempre a censurar-nos uns aos outros, como tenho visto a acontecer com frequência. É horrível e é mais uma consequência má desta pandemia. 

Outra consequência foi a suspensão de concertos. Como é que os Moonspell se organizaram? Em 2019 fizeram uma digressão bastante intensa e no ano seguinte parou tudo...

Em 2019 fizemos uma digressão muito intensa, mas é uma intensidade que dura há alguns anos. (risos) Em março de 2020, quando confinámos, a primeira coisa que quisemos fazer foi esperar para ver. Quis ver qual seria o papel da música, dos músicos, embora soubesse que a nossa classe ia adaptar-se e ia estar unida. E foi o que aconteceu. Parece-me que os artistas estão mais compreensivos e solidários uns com os outros. Foi uma coisa boa que resultou desta pandemia. Quando digo "artistas" refiro-me também aos que estão fora do palco e que muitas vezes são mais artistas que nós. Parece que há um movimento para fazer as coisas de uma forma mais sólida. Quando percebemos que esta situação ainda estava para durar aproveitámos a iniciativa "A Cultura é Segura" - uma luta que é de assinalar - e demos quatro concertos com toda a segurança. Foi ótimo. Aproveitámos cada segundo, ainda por cima porque os concertos tinham de ser mais curtos. Também metemos na cabeça que tínhamos de ir a Inglaterra gravar o novo disco, apesar de ter sido um pouco complicado devido ao Brexit e às quarentenas. Creio que o mais importante era ter objetivos e gerir muito bem as expectativas. A questão das expectativas é muito importante para qualquer pessoa que seja hiperativa, tal como são os Moonspell. Como estamos habituados a fazer muitas coisas, o facto de termos menos coisas para fazer poderia ter-nos atingido de uma forma brutal. Tentámos aproveitar aquilo que pudemos. Lançámo-nos no formato de streaming, por exemplo, e fomos fazendo coisas para não desaparecer do radar dos fãs, como o novo disco, a promoção do álbum ou a criação de novos conteúdos.
 



O vídeo de um dos avanços do novo disco, o tema 'All or Nothing', foi gravado num teatro vazio, tal como estão todas as salas de espetáculo por estes dias. Como é que o setor da música ao vivo poderá dar a volta a esta situação? 

Para ser honesto, de uma maneira geral, acho que estamos a correr atrás do prejuízo. Daí o confinamento. Sempre tive receio daquele momento em que Portugal deixasse de ter sorte e o vírus chegasse cá. Nós temos um privilégio geográfico. O rock n' roll chegou cá mais tarde, mas o vírus também. (risos) As coisas não correram assim tão bem quando o Governo começou a gerir a situação ou quando nós, enquanto sociedade, começámos a ter de gerir as idas ao café ou as visitas aos familiares. Temos de aproveitar esta oportunidade para aprender a gerir melhor este tipo de situações, desde quem manda a quem obedece. Acho, no entanto, que a indústria da música soube gerir isto tudo muito bem, o que não me surpreendeu. Os artistas e as pessoas que trabalham com artistas andam a adaptar-se há anos. Fomos habituados a rebater os problemas e as pedras que se metem no nosso caminho. A verdade é que os concertos que demos no ano passado tiveram muita adesão, mesmo que as pessoas tenham estado sentadas e de máscara a ouvir heavy metal. Acho que foi a melhor adesão de sempre porque evidenciou o amor que as pessoas sentem pela música. Por outro lado, também estamos desanimados porque sentimos que estamos a ser um pouco castigados. Quando se fala em retoma, a Cultura é sempre esquecida. Isto é mau. Não só por não nos darem uns estilhaços da "bazuca" europeia, mas também porque passa uma mensagem errada. Quando não incluem a Cultura nessa ajuda, estão a dizer ao grande público que os artistas não têm importância ou que podem muito bem desenrascar-se sozinhos. Não vamos desaparecer sem dar luta. Creio que temos de nos reinventar, como toda a gente. O que vai acontecer ninguém sabe. Só podemos especular. Há quem diga que vai ser uma espécie de pós-guerra e que as pessoas nem vão caber nas salas para ver os concertos. Talvez. Seria ótimo. Mas, por outro lado, talvez não. As pessoas vão ter de gerir o medo e o dinheiro. Acho que vamos dar passinhos de bebé. No caso dos Moonspell, que é o único do qual posso falar, estamos a pensar em fazer um concerto em Lisboa, se possível com público, lá para os meses de maio ou junho. Se não der, faremos um evento misto, um live com público.

 


Vocês começaram a trabalhar no novo disco antes da Covid-19, mas há pontos de ligação evidentes entre a temática do álbum e a realidade pandémica. Antes de falarmos sobre esse cruzamento, quero saber com que mindset é que se parte para um disco quando se está prestes a atingir 30 anos de carreira... 

O mindset foi fazer melhor e diferente. No meu caso, em particular, creio que o desafio não teve tanto a ver com os 30 anos de carreira mas sim com o nascimento do meu filho Fausto que tem agora 8 anos. Um músico, mesmo que não queira, pode ser um pouco ausente e nesse sentido acho que houve uma espécie de mecanismo de compensação. Não tem a ver com o percurso ou com a duração da carreira mas com a ideia de fazer sempre melhor. Fazer com que valha a pena. Não é que antes fizéssemos as coisas mal, não é nada disso. Até há pessoas que gostam mais do nosso passado do que do nosso presente ou do nosso futuro. O "Hermitage" é o resultado desse novo direcionamento. Antes não estávamos tão comprometidos. Grande parte da carreira dos Moonspell passou por golpes de sorte ou de loucura. Se nos perguntassem se queríamos fazer uma tournée de 13 datas na Rússia, dizíamos logo sim. (risos) As coisas mudaram desde que fui pai. Aliás, a paternidade é algo comum a quase todos os elementos da banda. Só o nosso novo baterista [Hugo Ribeiro] é que ainda não se estreou nesse capítulo. A proximidade dos 30 anos sublinha um pouco mais isso. Agora fazemos uma música mais adulta, com outro tipo de camadas, de arranjos. Há pessoas que dizem que tirámos o pé do acelerador, mas acho que o que fizemos foi meter uma mudança que permitiu ao carro ter mais balanço. Este álbum correu muito bem. Estamos muito contentes com o resultado final. Foi feito com muita paixão pela música. É um disco muito musical e tem aquilo com que nos comprometemos quando fomos papás: fazer uma coisa com voz própria, apesar das influências, com originalidade e qualidade. Estávamos todos muito focados, a banda estava em harmonia e ainda conseguimos ir gravar a Inglaterra onde tivemos uma experiência quase à anos 70. 
 





Por falar em "viagens" aos anos 70, este disco tem uma vibe retro que pisca o olho ao imaginário dos Pink Floyd, por exemplo. São uma das influências?

Os Pink Floyd sempre foram uma influência um pouco silenciosa. Quando comecei a ouvir heavy metal estava tão obcecado com o género que não dava hipótese a mais nada ou, pelo menos, fingia que não dava. Gostava do "The Wall" e das canções mais famosas, como o 'Shine On You Crazy Diamond', por exemplo. Até que, há uns quatro, cinco anos, fui a casa de um tio meu, em Alhandra, e ele tinha por lá um saco de cabedal, roxo, a lembrar os anos 70. Eu, como gosto de tralha antiga, perguntei-lhe logo se podia ficar com o saco. Ele disse que sim e que também podia ficar com o que estava lá dentro. Eram dez discos dos Pink Floyd, desde o "Ummagumma" ao "Momentary Lapse of Reason", passando pelo "Piper at the Gates of Dawn". Ouvi aquilo tudo e de forma repetida. Os meus colegas acharam piada e se calhar também começaram a ouvir. (risos) Uma coisa levou a outra. Provavelmente não estamos a revolucionar nada na música, mas queremos revolucionar um pouco o nosso som. Os Pink Floyd foram revolucionários e têm uma imortalidade e atualidade que outras bandas contemporâneas já não conseguem ter. Conseguiram este estatuto apesar das guerras entre o Roger Waters e o David Gilmour. 
 
Essas quezílias fazem parte do imaginário do rock n' roll...

Sim. E as pessoas chateiam-se. (risos) E depois existe o ego. A melhor maneira de estar numa banda é manter o bicho do ego controlado.  

A propósito, li numa entrevista que este disco foi terapêutico para vocês enquanto banda. Em que sentido?

Nós estamos habituados a trabalhar muito. Quase que acabámos com a banda por trabalharmos tanto. Quisemos ir a todas, como se costuma dizer. A dada altura, quando olhámos para trás, percebemos que estávamos quase a fazer 30 anos. Não diria que estávamos presos num ciclo vicioso porque, ao fim e ao cabo, é a nossa vida, o nosso trabalho, mas as feridas que não chegámos a sarar abriram-se um pouco com a quarentena. Creio que isso tem sido uma constante. Aliás, há bandas que acabaram, músicos que saíram dos projetos onde estavam. Os Moonspell eram praticamente os mesmos desde 1995. A recente saída do Miguel Gaspar, o nosso antigo baterista, foi um momento triste e, de certa forma, de falhanço. Apesar da amizade que nos ligava, não conseguimos resolver os nossos problemas. Acho sinceramente que, se não fosse o disco novo, teríamos ficado sem rumo. Nesse aspeto não só foi terapêutico como foi uma espécie de cola que nos uniu. Fizemos o disco e agora já temos vontade de fazer outro. Este disco tem essa importância nova. A importância de nos ter mantido unidos pela música e não pela fama, pelos dividendos, pelas viagens, pelo ego, pelo orgulho ou pela longevidade. Foi o mais importante que nos aconteceu em 2020. Deu-nos vontade de fazer ainda mais música. É isso que interessa. 
 


É quase providencial que este disco disserte sobre os eremitas, a reflexão na solidão, o recolhimento ou o isolamento numa altura em que, de certa forma, estamos isolados. Porquê este interesse pela vida dos eremitas?

Eu gosto muito deste tipo de assuntos. Quanto mais obscuros, melhor. A primeira vez que escrevi a palavra "hermitage" foi em 2017. Já nessa altura sentia que havia muita conectividade mas pouca conexão. Existem muitas relações mas pouca verdade nessas ligações. Acho que isso tem a ver com a forma como nos apresentamos uns aos outros. Apresentamo-nos sempre de uma maneira tão perfeita que quando cai um pouco a máscara já não há reconciliação possível. Quando comecei a escrever as primeiras letras estava a pensar sobretudo na dificuldade que existe hoje em dia em discutir ou debater alguma coisa. Somos uma espécie de eremitas da opinião e do ego. Construímos muros de pedra à nossa volta. Com este álbum não estamos a dizer para as pessoas irem viver para o deserto ou para longe das famílias. Não é nada disso. (risos) Falamos sim da importância de fazer uma pausa, de mudar de perspetiva. Uma das coisas que aprendi é que os eremitas não são seres egoístas que optam por ir enfrentar os demónios para longe. Enfrentam esses demónios com o objetivo de partilhar a experiência e melhorar as comunidades de onde partiram. O "Hermitage" é uma espécie de travão. Estamos todos a andar muito rápido e sinto até que estamos a fazer uma curva acentuada. Ao longo dos últimos anos, temos estado a viver debaixo de uma grande pressão. O trabalho, as aulas, os horários, os filhos, as dietas, sei lá. A pressão tem sido muita e nós, humanos, nem sempre respondemos assim tão bem sob pressão. Não conheço ninguém que não esteja stressado. Talvez uma pessoa ou duas. 
 


Achas que experiência pandémica e o abrandamento forçado podem ter ajudado a mudar o curso das coisas? Será que agora vamos pensar mais no conceito de "bem maior" que abre o disco?

Espero que sim mas creio que não. Para começar, lidamos com a informação sobre a Covid-19 de uma maneira extremamente crítica, além de estarmos um pouco desorientados com o assunto. O surgimento dos virologistas de bancada é um exemplo. A história repete-se. Quando estudamos filosofia somos formatados para acreditar que todo o conhecimento científico, ético, moral e económico serve um bem maior mas acho que isso não tem acontecido. O humanista e o esperançoso que tenho em mim gostariam que sim, mas, e sem juízo de valor para com ninguém porque todos nós contribuímos para o estado do mundo atual mesmo que de forma inocente ou por pura ignorância, não vejo esse passo a ser dado. Vejo as pessoas quase à beira de um ataque de nervos. Sinto-nos quase à beira de uma guerra. Não falo de uma guerra mundial mas de uma guerra na fila do supermercado. Parece que quando temos o tal livre arbítrio e a possibilidade de escolha acabamos por tomar decisões pouco informadas. Acho que vai depender de cada um de nós. O nosso disco chama-se "Hermitage", mas o que queremos é apelar ao espírito de comunidade. Temos de saber dar os passos certos e não passos maiores que as pernas. Acho que neste momento a humanidade já está a fazer a espargata. Temos de estar dispostos a mudar, sendo que para mudar temos de estar dispostos a aprender. O nosso mal é a pseudofartura de um conhecimento que na verdade não temos.