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Chico Buarque recebe Prémio Camões e lembra "autores e artistas humilhados e ofendidos" nos anos de "estupidez e obscurantismo"

O músico, compositor e escritor recebeu hoje o Prémio Camões, que lhe foi atribuído em 2019. A cerimónia teve lugar no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra.

Chico Buarque recebe Prémio Camões e lembra "autores e artistas humilhados e ofendidos" nos anos de "estupidez e obscurantismo"
LUSA

Esta segunda-feira, 24 de abril, Chico Buarque de Holanda recebeu o Prémio Camões, que lhe foi atribuído em 2019, numa cerimónia que teve lugar no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra.

O autor brasileiro dedicou o reconhecimento a "tantos autores humilhados e ofendidos" nos "anos de estupidez e obscurantismo", lembrando que "a ameaça fascista persiste no Brasil e um pouco por toda a parte". Sobre a presidência de Jair Bolsonaro, Chico Buarque falou em "quatro anos de governo funesto que duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás". 

Chico Buarque recebeu o prémio na presença dos chefes de Estado de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, de vários membros do governo e da diplomacia dos dois países, de dezenas de convidados, numa sessão acompanhada por uma extensa cobertura mediática de jornalistas portugueses e brasileiros.

No discurso de agradecimento, emocionado, Chico Buarque lembrou o pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, de quem disse ter herdado "alguns livros e o amor pela língua portuguesa", e que contribuiu para a sua formação política, de esquerda.

Recuando ainda mais na árvore genealógica, o músico e escritor disse que tem nas veias "sangue do açoitado e do açoitador" e antepassados judeus sefarditas, pelos quais disse que "um dia talvez alcance o direito à cidadania portuguesa".

"Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência", disse, mas reconheceu que "tem uma porta entreaberta" em Portugal.

Na cerimónia de hoje, o presidente do júri do Prémio Camões, o académico Manuel Frias Martins, afirmou que o universo criativo de Chico Buarque "tem sempre uma espécie de reserva de energia para recordar mágoas e equívocos das relações humanas e contrariar a violência, a injustiça e o medo". "Que a nossa decisão [do Prémio Camões] sirva para reforçar a união de todas as nações que se entendem em língua portuguesa", disse, agradecendo ao autor de "Estorvo", "Essa gente" e "Benjamim", "toda a arte e beleza que trouxe ao longo de seis décadas" de carreira.

A cerimónia chegou a estar marcada para abril de 2020, mas a pandemia da Covid-19 obrigou a um adiamento de entrega do prémio, remarcada para hoje, coincidindo com as celebrações do 25 de Abril e com a visita de Estado, de cinco dias, do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, a Portugal.

O Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a espera de quatro anos pela entrega do reconhecimento a Chico Buarque, referindo que alguns "não gostaram" da sua atribuição. "Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora", disse Marcelo Rebelo de Sousa, dirigindo-se ao compositor, cantor e escritor brasileiro, citando versos de uma canção sua. O chefe de Estado português discursava na cerimónia, na presença de Lula da Silva e do primeiro-ministro português, António Costa.


"Saudando a decisão do júri do Prémio Camões e as razões da sua decisão, suspeito que por uma vez ninguém precisaria da fundamentação dessa decisão, de tal forma ela se impõe como evidência, acima de tudo poética, mas também romanesca", considerou Marcelo Rebelo de Sousa.

A entrega do Prémio Camões de 2019 a Chico Buarque acontece simbolicamente na véspera da Revolução dos Cravos em Portugal e quatro anos depois de a sua atribuição ter sido anunciada, em 21 de maio de 2019. O então Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, mostrou-se reticente em assinar o diploma do prémio, o que levou Chico Buarque a afirmar: "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prémio Camões".

"Dir-se-á que quatro anos é uma longa espera para concretizar, não importa chorar o leite derramado, o prémio respeita a 2019, é entregue pessoalmente em 2023, mas ninguém cuidará de saber a que ano diz respeito. Diz respeito a todos os anos", sustentou Marcelo Rebelo de Sousa.

O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, destacou que corrigiu hoje um dos "maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira" ao entregar, finalmente, o Prémio Camões a Chico Buarque de Holanda. 

Lula da Silva afirmou que o convite para participar na cerimónia de entrega do prémio, em Queluz, foi "uma oportunidade de corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos anos", além de "um motivo de grande honra".

"Finalmente a democracia venceu no Brasil e é por isso que estamos aqui hoje", declarou o Presidente brasileiro, entre criticas à "extrema-direita", de Bolsonaro, que disse ter voltado a imprimir “obscurantismo e censura das artes” no país.

"Este prémio é a resposta do talento conta a censura", sublinhou Lula da Silva, no seu discurso na cerimónia de entrega do prémio, a que presidiu, juntamente com o Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa.


O chefe de Estado brasileiro terminou o discurso num tom mais intimista, dirigindo-se ao "querido Chico" para lhe dar os parabéns e afirmar: "Ninguém merece este prémio mais do que você", que fez da sua obra "uma declaração de amor à literatura portuguesa".

Lula da Silva contou ainda, dirigindo-se a Chico Buarque, que quando era criança disse à mãe que queria cantar, escrever peças de teatro, "fazer tudo o que você faz" e ser nisso "o mais importante".

A mãe respondeu-lhe que não podia ser, porque já tinha nascido um menino, chamado Chico Buarque, que ia ser "o mais importante" e que ele, Lula da Silva, se preparasse porque ia ser Presidente.

O Prémio Camões é o galardão de maior prestígio da língua portuguesa e presta homenagem a um escritor que, pela sua obra, contribua para o enriquecimento e projeção do património literário e cultural de língua portuguesa.

Na entrega do prémio estiveram os escritores Mia Couto e Manuel Alegre - ambos Prémio Camões -, a presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, a cantora Carminho, a realizadora Teresa Villaverde, o coronel Vasco Lourenço, e o ex-ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, entre dezenas de convidados da área da cultura.

Depois de Chico Buarque, já foram distinguidos com o Prémio Camões o professor e ensaísta português Vítor Manuel Aguiar e Silva (2020), a escritora moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o escritor brasileiro Silviano Santiago (2022).

O Prémio Camões foi criado pelos dois países para reconhecer "um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum".

Chico Buarque tem este ano quatro concertos marcados em Portugal: nos dias 26 e 27 de maio, na Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota, no Porto, e nos dias 01 e 02 de junho, no Campo Pequeno, em Lisboa.