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Pedro Mafama: "estou mais diurno"

Sai nesta sexta-feira o segundo álbum do músico, "Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente".

Pedro Mafama: "estou mais diurno"
Carinho Mio

Já nos reluz desde hoje o novo disco de Pedro Mafama, "Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente", movido a energia solar (espiritualmente falando). Foi de dia que o músico carregou as suas baterias para este álbum mais festivo, que o próprio descreve como uma obra de "baile à portuguesa", entre marchas e rumba portuguesa, com o bafo extra do cante alentejano. 

A outra força motriz para este disco é o seu estado de felicidade - individual, conjugal, coletivo – que faz questão de partilhar com o mundo. Pedro Mafama estava no abismo mas deu um passo em frente. O abismo não era um precipício, mas um quarto escuro, cujas janelas Mafama agora abriu. Depois da austeridade formal do álbum de estreia "Por Este Rio Abaixo", Pedro Mafama está de sorriso largo neste novo longa-duração. E é sempre a sorrir que nos dá esta entrevista.   

"Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente" é um álbum de felicidade conjugal? 
Sim, e de felicidade em geral: de família, amigos, de trabalho. Motivos não faltam para celebrar neste momento.

Nota-se essa felicidade no tema 'Preço Certo', que parece auto-biográfico. Não tens problema nenhum em fazer referências familiares.
Se calhar, essa foi a primeira vez em que disse diretamente porque estou feliz. Sem grandes metáforas, o 'Preço Certo' é uma celebração do dos dois amores que estou a viver: da minha namorada e da minha filha. De estar a vencer na vida e de realizar sonhos à minha maneira. Ou de estar na estrada. Todas as coisas que me fazem sentir como se tivesse ganho o [concurso da RTP] "Preço Certo".

 

Foi difícil fazer o vídeo do 'Preço Certo'? Ou foi fácil? É já impossível falar-se do tema e não se pensar no vídeo.
Mostrámos a música ao Preço Certo. Percebemos logo que estavam dentro da ideia que tínhamos: pedir ao "Preço Certo" para fazerem o videoclipe. Nós não fomos com as câmara para filmar ao "Preço Certo". Fizemos a proposta, quisemos entrar como concorrentes. O resto foi a Ana que tratou. Foi a equipa do "Preço Certo" que nos montou o vídeo. Havia uma quantidade de coisas que estavam ao acaso e fora do nosso controlo, mas isso é que é bonito nesse vídeo: a falta de controlo, o acaso, o improviso, o espontâneo que não podia ser encenado. Foi o vídeo mais fácil, porque não tive que estar envolvido.

 

O disco é uma espécie de road movie à portuguesa, de prego a fundo ou a marchar, em que a tasca é a estação de serviço?
Sim. Ainda não tinha visto o disco assim, apesar do vídeo do 'Estrada' ser completamente isso. Eu, se calhar, diria que este disco é mais um baile à portuguesa. O disco não tem propriamente uma narrativa. Tem um começo, um ponto alto e um ponto baixo. O meu disco anterior era uma viagem mesmo ["Por Este Rio Abaixo"]. Começava aqui, viajava, metia-se em tempestades e acabava ali. É um disco conceptual sobre a minha ideia de baile, mas é um bocado mais aberto. Não diria que é uma playlist, mas não me desagrada essa ideia. É um baile do princípio ao fim, em que estou sempre acompanhado. 

É um baile pela Estrada Nacional 2, que vai de norte a sul, não?
Não é só um baile lisboeta, de certeza. Nem todos os bailes são de Santos Populares. Todos nós temos as nossas próprias memórias com bailes. Claro que as minhas [memórias] passam muito pelos santos populares, na Graça, mas [o disco] não é só sobre os Santos Populares. É sobre o baile. E pode ser sobre o baile de verão numa aldeia do norte, no Algarve ou num aniversário em dezembro, em casa. É para celebrar na mesma. 

É uma boémia muito etnográfica, não é?
Este disco é menos etnográfico que o anterior, que estava mesmo a mexer com o passado. As inspirações das músicas do "Por Este Rio Abaixo" eram coisas que quase já não existem. O 'Noite Escura' samplava cânticos de trabalho, com a voz inspirada na Catarina Chitas, uma adufeira que já morreu há muito tempo. Este álbum é sobre música de agora, apesar de poder remeter para um universo tradicional. A música tradicional portuguesa pega nessas coisas e trá-las para a frente. Basta vermos um programa como o Domingão, em que temos a tradição a conviver com sintetizadores futuristas. A música do 'Preço Certo' é do presente.

E também do momento, do gozo do momento?
É muito do momento. Eu comecei a compor para este disco em dezembro de 2021. Não há nada neste disco que seja mais antigo que isso. É um estado de espírito muito de agora.

Ambos os discos têm conceitos muito fortes, mas o primeiro é mais marítimo e muito assente no passado, e este novo tem os pés mais assentes na terra e é do presente. Mesmo as geografias são diferentes. Se o outro disco era transtlântico, este novo é mais virado para o país adentro, de norte a sul.
Por alguma razão, este disco está mais focado no aqui do que o Por Este Rio Abaixo, em que eu estava muito a pensar na nossa herança árabe, sobre o nosso passado. Eu aqui estou mais a olhar para o que está à minha volta.

Se bem os que pés estão pouco assentes na terra, é um disco muito vertiginoso.
Sentes vertigem? Sinto pouca vertigem, pouco perigo iminente. No "Por Este Rio Abaixo", eu estava sempre com a noite, os vícios e a morte. Aqui estou mais diurno. Para este disco, obriguei-me a escrever durante o dia, porque me dá uma perspetiva completamente diferente. 

Mas pões a hipótese do precipício à noite.
Sim, há uma música, o 'Estranha Magia', que é exatamente isso: "aquela melancolia que quando cai o dia nos tenta namorar". Mas nessa música, estou claramente a tentar combatê-la: "mas se me deres a alegria, pões-me a vista um dia, vou parar com a má vida e nos teus braços vou ficar". É dos poucos momentos em que se sente um perigo qualquer a tentar seduzir-me outra vez. E não estou sozinho a viver essa tristeza. E tenho os meus amigos da Graça a juntarem-se no coro. As marchas desbloquearam-me. As marchas são muito descritivas da cidade: os candeeiros, os enfeites, "Lisboa estás tão bonita". Isso desbloqueou-me sobre a perspetiva da minha escrita. No 'Estranha Magia', eu começo a descrever a cidade: "em cada noite de luar ouvem-se as árvores a dançar; o carro passa a dar kizomba, o barco serpenteia o mar"; ou seja, é uma perspetiva das marchas, de descrever o que está à nossa volta. 

 

Falaste n"o carro passa kizomba". Mas usas outras referências ao longo do disco as "filas do pão", a "medalha de ouro ao peito", o "palito no dente". Tiveste um gosto especial em usar estes elementos mundanos no disco?
Sim, sem dúvida. Dá-me um gozo gigante e acho que este disco tem um bocadinho isso. Eu digo "palito no dente/eu devia abrir uma garagem", num humor quase a gozar comigo mesmo. 

É uma viagem ao Portugal profundo, como acontece no 'Preço Certo'?
O Preço Certo é a encarnação da alegria, numa comunhão. O próprio Fernando Mendes [apresentador do concurso] é, para mim, um simbolo de otimismo, de celebração, de ir para a frente. É por isso que já tinhamos o sample do Fernando Mendes antes de gravarmos o videoclipe.

Foi para ti um desafio usares grupos de cantares alentejanos? 
O 'Hino dos Mineiros' surgiu como um sample. Depois de fazer a música, fui mostrá-la aos mineiros de Aljustrel. Fui à taberna do Filipe. Essa tarde foi incrível. Tem sido uma constante neste álbum: não fazer as coisas sozinho. No 'Hino dos Mineiros', não senti necessidade de gravar com o grupo de cantares alentejanos. O cante é vocal. Como está limpo, à capela, não senti necessidade de os chamar a estúdio. Mas senti necessidade de ir ter com eles, de lhes mostrar a música e de saber o que eles pensavam. Eu estava bastante receoso de estar a juntar cante alentejano com rumba portuguesa, sabendo infelizmente das tensões que existem no nosso país, em especial no Alentejo, entre estas duas culturas que, na verdade, são bastante parecidas. O que quis envidenciar no 'Estrada' era as pontes em comum entre os ciganos e a cultura alentejana. O alto do cante alentejano, aquele que anda a improvisar e a fazer melodias muito arabescas [com] muitas voltinhas de voz, tem muito em comum com a música cigana. No 'Estrada' quis juntar esses dois universos que estão em tensão nos dias de hoje. Não tenho a ilusão de que vou resolver alguma coisa. Mas gosto do facto de em três minutos e meio esses dois mundos serem iguais, a mesma coisa. 

 

Modernizar a tradição é uma missão para ti?
Não sinto missão nenhuma como artista, a não ser trocar certezas por coisas não tão certas. Gosto de trocar as coisas de contextos, gosto de fazer pontes onde não havia, gosto de questionar verdades. Não sinto que eu tenha uma missão. É difícil um artista ter uma missão, porque passados dois anos já estamos interessados num outro universo musical. Basta comparar este disco com o anterior. Os dois discos têm mensagens completamente diferentes. Como artista, é difícil comprometer-me com uma missão, porque não sei o que vou estar a ouvir daqui a um ano. A minha missão é subverter conceitos e certezas.

Gostavas de vir a participar num corso das Marchas de Santo António, ao lado da Ana [Moura], ou num desfile carnavalesco?
Quem sabe se não é já neste ano. 

Pelo bairro da Graça?
Pulei a cerca até ao bairro de Alfama. Estou envolvido com as marchas de Alfama. Estou a dar-lhes uma pequena ajuda. 

Vais desfilar em destaque?
Não vou desfilar, porque sou péssimo a dançar, isso iria prejudicar mais a marcha de Alfama do que iria ajudar. Estou a ajudá-los à minha maneira para este ano. Lamento dizer isto por eu ser da Graça, mas este ano espero que ganhe a marcha de Alfama. 

Tens um gosto especial em usar a palavra bandido. Porquê?
Isso é no 'Santo'?

Dizes mais vezes que essa no 'Santo'.
Nunca tinha pensado nisso. Eu acho que gosto de pessoas que não obedecem a regras. Também escolhi o meu nome por causa disso. Para mim, má fama, bandido, malandro são posições de liberdade. Para mim Mafama é poder dizer a coisa errada quando te apetece. Há muita liberdade em fazer a coisa errada. Por isso, o bandido e o malandro também se relacionam com isso.