O vocalista e guitarrista dos Linda Martini, André Henriques, edita hoje o segundo álbum em nome próprio, "Leveza", que apanha em cheio o êxodo urbano do músico, agora a viver a 40 minutos de Lisboa.
Os brasileiros Ricardo Dias Gomes (apoio importante no disco de estreia a solo de André Henriques, "Cajarana") e Domenico Lancellotti formam o triunvirato de produtores com o autor principal. O flautista e clarinetista Adriano Dias Pereira e a cantora Anna Grabner (como segunda voz) dificilmente se ficam pelos papéis secundários, ajudando a decalcar "Leveza" como uma obra singular nos mais vinte de carreira do compositor dos Linda Martini.
Aproveitámos uma fuga à cidade de André Henriques para falar da sua nova "Leveza".
Contando com tudo o que fizeste, será o "Leveza" o teu álbum mais laboratorial?
No laboratório, tu experimentas muito. E foi isso que aconteceu, não num laboratório, mas num ambiente muito informal, porque o disco nem sequer foi gravado num estúdio, foi gravado numa cave, com um par de microfones e uns amigos à mistura. Comparando com o primeiro [álbum], o Cajarana, este é um disco onde experimentei muito mais. E isso nota-se nalgumas canções do disco. Há aqui um espirito mais aventureiro, enquanto que no outro havia a construção de uma identidade nova para quem está numa banda há 20 anos. Quando me lembrei de fazer um disco a solo, que nem sequer era um sonho ou um projeto, eu tinha muitas inquietações: “o que é que eu vou fazer de diferente da banda?” Neste aqui, já me libertei dessa amarras, foi mais um disco de intuição. Experimentei muito mais.
Desconstróis mais? Há uma sensação de maior flexibilidade?
Tens a introdução de elementos que não estavam presentes no primeiro disco, a começar pelos sopros. Aliado a este lado de experimentação e fazendo uma ponte com o título Leveza, houve uma intenção deliberada de ir um pouco abaixo, optando por um ambiente mais familiar numa casa, e não num estúdio, que é necessariamente mais assético e mais fechado, porque queria que as coisas soassem mais orgânicas. A presença dos sopros ao longo do disco, muito influente na tónica que constrói, o facto de eu estar a tocar uma guitarra clássica com cordas de nylon, que é um som muito quente. No outro álbum, eu recorria também a guitarras acústicas, mas ainda havia uma vertente muito elétrica, uma guitarra muito processada com efeitos de modulação. Eu queria canções despidas e que se percebesse quantas pessoas estão a tocar, se estão três, se estão quatro. Daí a leveza que transpôs do nome para todo o processo.
A “Leveza” do título é essa mistura de simplicidade com liberdade?
Não sendo um disco conceptual, há temáticas que atravessam o disco todo, que nasce na minha cabeça, quando mudo da cidade para o campo. Há esta ideia idílica de ir viver para o campo. Há um confronto com a realidade, sais da cidade e estás isolado. Tivemos que reajustar as dinâmicas familiares, construimos uma casa dentro doutra casa. Reergui uma casa. E isso é uma coisa transversal ao disco. Leveza, mais que um ponto de chegada, era algo que eu queria. O disco foi desenvolvido no meio de sons de berbequins e de paredes a cairem e a erguerem-se. Não era só o pó das obras, como o pó de nós assentarmos. Tentei inspirar-me com o que este novo ambiente trazia. Essa ideia de mais calma e de mais simplicidade de que falas não foi uma coisa deliberada mas foi uma coisa que aconteceu. O meu meio alterou-se e contaminou, de alguma forma, as canções.
O jazz assoma-se mais neste disco, inclinas-te para uma certa folk. A solo ganhas mais vistas para outras formas musicais?
Isso era uma coisa que eu queria. Tendo uma banda e explorando um determinado tipo de som mais rock e mais abrasivo, uma coisa mais intensa que eu gosto muito - cresci nesse ambiente mesmo antes de ter os Linda Martini, nas bandas punk e hardcore, foi aí que comecei a tocar – e não me querendo afastar disso, continuando a ter essa vida paralela, só havia uma maneira do projeto a solo funcionar: fazer uma coisa radicalmente diferente daquela que faço com os meus companheiros de sempre. A forma que encontrei foi a exploração de outras sonoridades. O facto de ter as guitarras mais despidas, esse ambiente mais folk, a ideia dos sopros com algumas tonalidades próximas do jazz, é uma coisa que eu desejo imprimir na minha música.
O uso etéreo de uma voz feminina, como a da Anna Grabner, era um velho sonho teu?
Não, é um daqueles acasos. Sou uma pessoa de acasos, não gosto muito de planear a longo prazo. As músicas foram aparecendo. No meio disto tudo e destas mudanças todas, acabei por conhecer a Anna Grabner. Ela é a pessoa que faz as segundas vozes. É austríaca, não é portuguesa. Conheci-a de uma forma muito curiosa, porque os nossos filhos andam na mesma escola. Sempre que eu ia deixar a mais nova na escola, eu encontrava a Anna, que já conhecia de vista, estava sempre a cantar. Um dia, meti conversa com ela, para perceber se era cantora profissional. E percebi que não. Gosta de cantar, faz uso de voz ao nível das terapias. Mas ela nunca tinha gravado um disco. Eu, naquela de me deixar contaminar pelo ambiente, achei muito interessante trazê-la para o disco. Ela fala português fluente, tem pronúncia, porque não é nativa. Eu queria alguém que ao cantar, não teria que ter exatamente a pronúncia que nós temos. Achei engraçado esse açúcar que ela trouxe.
Quando estavas a lançar o álbum “Cajarana”, dizias-me que estavas a usar mais estruturas narrativas. Neste álbum, as letras parecem-me mais abstractas.
Para mim é sempre muito difícil ajuizar. Enquanto autor dos textos, sei bem como é que surgiu aquela ideia ou aquela história que quis contar. Embora não sejam de fácil leitura para terceiros, comparado com o Cajarana, ainda fui mais fundo no aspeto pessoal. Quase todas as canções são muito pessoais, sobre coisas que me aconteceram ou que me presenciei. Há [temas] com uma componente mais narrativa e cinematográfica, outras são mais produto de uma imaginação mais à solta. Não sendo um disco conceptual, fala muito desta ideia de quem sai da cidade, olhando a cidade para quem está de fora. O que é que fica dentro de ti. Não me tornei de repente agrigultor só por me ter mudado para o campo. Não passei a vestir jardineiras, a plantar cebolas. A cidade não sai de ti tão facilmente. Há qualquer coisa que fica das angústias e ansiedades da cidade. Estive a viver até aos quarenta e tal na cidade. Acaba por ser um disco muito pessoal e um retrato do momento onde compus as canções.
O que queres dizer no tema 'Muro'?
Por acaso, fico feliz por me fazeres essa pergunta. Não é das canções mais óbvias, não é um single. É das mais experimentais de que falávamos e é uma história curiosa. Nesta coisa de que te falava de construir uma casa, tive muitos desgostos pelo meio. Ainda estou para conhecer alguém que tenha tido uma experiência feliz com obras... Pela tua cara, já percebi que tens também histórias para contar...
Terríveis!
Havia um muro que faltava acabar. Felizmente, tive um pedreiro que me ajudou e que tem um nome muito engraçado, Mário Poeira. Ajudou-me a fazer o muro. Eu tinha que comprar os materiais para fazer o muro. Ele dá-me uma lista: “aponta aí, 12 metros quadrados de pedra, 100 tijolos de 22, cinco sacos daqueles cimento espanhol”. Não te sei dizer porquê, mas num dia, tinha o telefone ao pé do sofá com a lista dele e de repente começo a cantar aquilo. Eu não tenho uma receita para fazer uma canção, não há, se houvesse eu era uma pessoa mais feliz. Sempre que vou fazer uma canção, é uma coisa muito desafiadora, meio-vertiginosa, porque não sabes bem. Vai-se construindo e vais tentando agarrar as pontas soltas. Neste caso, usei a receita de um muro, em que precisas de determinados materiais, para fazer uma canção.
O tema acaba com chuva.
A chuva é um daqueles acasos curiosos. Como te disse, gravámos numa cave em Lisboa, ao pé da graça. Não sendo um estúdio, não tínhamos portas que vedassem devidamente. Essa canção em particular foi gravada num dia de completo caos em Lisboa, com chuvadas intensas. A chuva era tanta a bater naquele telheiro de onde nós estávamos, o estúdio era ao lado da cozinha (curiosamente, onde eu gravei o primeiro vídeo, 'Os Fantasmas de Amanhã'). Aquilo tem um toldo em que fazia tanto barulho que acabava por entrar [na gravação de "Muro"]. Víamos que não havia sinais de que aquilo parasse e resolvemos assumir.
É engraçado porque estava tentar decibrar se havia aqui alguma mensagem velada de intervenção política contra muros ou uma coisa assim. E de facto, não estava conseguir decifrar nada.
Essa é a vantagem da música, não se esgota na visão do autor. Uma pessoa pode ir buscar novos significados e isso é muito interessante. Dizeres-me isso é fascinante, porque não teve a ver com a génese da canção.
Quando gravaste o "Cajarana", sentiste logo na altura que tinha que haver sequela a solo?
Não há propriamente uma obrigação, ou uma gilhotina por cima de mim, só porque abri esta porta e agora tenho que pôr mais coisas lá para dentro. Na altura em que falámos sobre o disco há três anos, chegaram-se a perguntar isso: “agora que, finalmente, fizeste um disco a solo, será que vai haver mais coisas no futuro?”. Lembro-me que não tinha planos, mas a ideia dá-te sempre essa vontade. Fiquei com o bichinho depois de ter conseguido lançar um disco que não canibaliza e que encontra um som diferente do que tinha feito no passado. Ficas com vontade de encheres mais a gaveta. Nem eu me impus, nem a minha agência ou a minha editora Arraial. “O Cajarana tem dois anos, tens que fazer um novo disco”. Não houve nada disso. A verdade é que eu gosto muito daquilo que faço. No meio destas confusões todas e das obras, eu tinha que ser feliz, para me espantar. Quero fazer coisas que me dêem prazer, quero descobrir ouro no meio deste processo. A forma que eu tenho de distinguir entre os Linda Martini e o que faço a solo é nas janelas de tempo. Coincidiu que nesta altura da mudança, eu não estava a fazer nada com os Linda Martini. Lancei-me e surgiram-me estas canções.
Atuas no dia 22 no Montijo [hoje], no dia 15 de novembro no Teatro Maria Matos [em Lisboa] e no dia 17 desse mês no Plano B [Porto]. Vais ser acompanhado pelos músicos que gravaram contigo o Leveza?
Não. Não vou estar sozinho, vou estar com uma banda que montei, que são dois irmãos: o Miguel Abeleira na bateria e o João Abeleira nos teclados. Gosto muito quando oiço um disco e vou ver o artista ou a banda ao vivo em que as coisas não são necessariamente iguais ao disco. Se eu quero só o disco, fico em casa, não pago para ir ver um concerto. Montei este trio, com os mesmos arranjos dos dois discos, mas com uma instrumentação adaptada a estas três peças. Depois acaba por haver algumas surpresas, porque há coisas necessariamente diferentes e acaba por ser entusiasmante. Mesmo que tenhas o mesmo tipo de timbre na instrumentação, sempre que vais traduzir um disco ao vivo, há sempre diferenças: o som não é tão controlado, o ambiente ao vivo requer outro nervo. Estou muito entusiasmado. Já não ouvia o disco há algum tempo, como deves imaginar. O álbum foi gravado em dezembro do ano passado, mas agora que retomámos os ensaios com esta banda, estou muito feliz por tocar estas canções. O disco acaba por ter uma segunda vida, que não é necessariamente igual em todos os pontos, mas que acaba por ter muito momentos interessantes e eu gosto muito de cultivar esta diferença entre o que é um disco e o que é o espetáculo ao vivo.