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Salvador Sobral: "a vida é curta para nos prendermos a um só género musical"

"Timbre" é o novo álbum do cantor, que sai nesta sexta-feira.

Salvador Sobral: "a vida é curta para nos prendermos a um só género musical"
Adolfo Bueno & Corina Clamens (cortesia Warner Music)

"Timbre" é quanto muito um álbum em nome próprio de Salvador Sobral, mas nunca um disco a solo. Há toda uma rede de gente que o cantor agrega à sua volta: quatro parceiros de duetos (a irmã Luísa Sobral, o uruguaio Jorge Drexler, a mexicana Silvana Estrada e a francesa Barbara Pravi), duas mãos amigas nas letras e mais seis músicos em apoio permanente, incluindo o braço-direito Leo Aldrey, com quem forma o ninho autoral.

O vencedor do Festival da Eurovisão de 2017 volta a fazer um álbum translinguístico e (musicalmente falando) transgénero, apesar do adn no jazz.

A entrevista em baixo foi feita por Zoom, com Salvador Sobral a falar a partir de Paris.

Mais do que um álbum alegre e otimista, “Timbre” é um disco muito aberto, não é? Não se fecha em estamques, há uma grande diversidade.
Já é muito comum em mim e sinto [isso] na indústria musical em geral o fim das fronteiras de género, de estilo musical, se ouvirmos o [álbum de 2021] "Meu Coco" do Caetano Veloso, que tem funk brasileiro e depois tem um fado com a Carminho, ou os discos da Rosalía. Eu sou muito apologista dessa onda de deixar de haver géneros e de cantar simplesmente o que gosto de cantar, que é tudo, eu gosto de todos os géneros musicais. A vida é demasiado curta para estarmos presos a um género musical. Pelo menos, eu. Quando falavas em "aberto", parecia estares a falar em movimento. É um disco cheio de movimento. É um disco que anda, e eu gosto disso. 

 

Em termos de abertura noutro sentido, és mais aberto ao fogo de artifício que criticavas há uns anos e será que fazes hoje esse fogo de artifício?
Não, na minha música decidi não fazer esse fogo de artifício literal. Não sei se já foste a algum espetáculo meu, mas faço fogo de artifício nas minhas interpretações e à minha maneira, nas personagens que crio em palco, nas piadas. Os próprios instrumentos têm o seu fogo de artifício metafórico. Enquanto artista, não, mas enquanto ouvinte considero-me bastante aberto e oiço de tudo. Se calhar, há certos estilos de música que não me apetece ouvir ao vivo.

Em termos de mensagem, o que é que tentas dizer em 'Pedra Quente'?
O 'Pedra Quente' começou por ser uma letra que eu escrevi sobre os meus tempos de férias em Sol Tróia com os meus amigos. Era um poema muito literal sobre o facto de irmos para a praia todos os dias descalços. Queimávamos os pés de morte, porque aquilo era alcatrão. E no dia seguinte, esquecíamo-nos a dor do dia anterior e voltávamos a ir descalços. É uma nostalgia de infância, esse descuido, sem estar a pensar nas consequências. Ser criança é isso: viver a infância sem pensar nas consequências de um pé queimado. Mas depois, à medida que o tema foi avançando e o videoclipe, acabou por se tornar numa crítica à indústria do "the show must go on". Apesar de tudo, temos sempre que continuar a manter o sorriso enquanto artistas, é indiferente o estado de saúde. Mas não era essa a intenção inicial do tema. Com o vídeo, parece uma crítica à indústria musical que não rejeito. Eu tenho bastantes críticas à indústria musical. 

 

Foi engraçado ver-te num videoclipe tão teatralizado.
Gosto muito de representar. Eu gostava muito de fazer um filme. Fiz uma peça de teatro no ano passado, no festival Big Bang, no CCB. Desde que vi o Jacques Brel, foi para mim uma epifania de como eu quero ser em palco, essas personagens que quero encarnar e essa teatralização. Faz tudo parte da interpretação enquanto cantor e isso interessa-me muito. 

Pareceste divertido a fazer o vídeo.
Sim, os videoclipes são uma via para explorarmos esta veia de ator que eu quero seguir para ver até onde é que dá. 

Quem são os 'Abutres da Premonição'?
Essa canção surgiu de uma imagem. Eu e o Leo [Aldrey] já estávamos muito cansados, estávamos numa residência a compor. Já eram três da manhã. Estávamos entre o sono e o acordado e de repente eu tive uma imagem muito concreta de um deserto, aquelas estradas dos Estados Unidos do “Paris Texas”, onde não se passa nada e só há aqueles bares, com um piano desafinado e com aquelas portas de salão que abrem. Eu tive essa imagem e propus ao Leo escrever em cima dessa imagem. Era mais um jogo de composição, fizemos muitos. Começou assim: "seis da tarde, o vento arde, ninguém pára aqui". Aquelas ondinhas do deserto, um calor imenso, a garrafa seca. A canção tornou-se sobre a secura da composição. Os 'Abutres da Premonição' são os fantasmas que nos dizem que não vamos conseguir fazer o disco a tempo, ou que eu não vou conseguir ser tão compositor como sou como cantor. Começámos com esta imagem, mas estávamos tão cansados e tão fartos de compor que a canção acabou por se tornar sobre o medo de não conseguir escrever canções e de as canções não ficarem boas. É a garrafa seca da inspiração. No fundo, é uma canção dedicada ao bloqueio do compositor.  

 

O teu destino volta a cruzar-se com a Eurovisão, através do fenómeno de 2021, a francesa Barbara Pravi, no dueto 'Les eaux qui me gardent'. Tinhas ficado impressionado com a prestação dela no 'Voilá'? O que te levou a convidá-la?
É verdade que fiquei impressionado com a prestação dela, mas, sobretudo, senti-me identificado. Senti-a como um alien ali também, igual a mim em 2017... os artistas fora da caixa na Eurovisão. Senti-me identificado e escrevi-lhe: "que lindo, a forma como interpretas de uma forma muito visceral a canção, cheia de emoção, uma interpretação muito verdadeira". Ela disse-me: "podiamos fazer um zoom". Era na altura da covid. Fizemos um zoom na altura da Eurovisão e gostei da personalidade dela, além da voz. Vim para Paris com a minha namorada, e não conhecia aqui muita gente. E a Barbara Pravi é minha vizinha. Então, acabámos por estar juntos várias vezes, a falar sobre música. Então, foi assim que surgiu o convite para cantar 'Les eaux qui me gardent', porque já havia um conhecimento pessoal antes. 

A Barbara Pravi chegou a fazer uma versão do 'Amar pelos Dois', com que ganhaste o Festival da Eurovisão.
Um dia, ela estava no cabeleireiro e a minha sogra estava lá. E [a Barbara Pravi] diz: "gostei muito daquele representante do Festival de 2017". "Olha, ele é meu genro". É uma coincidência enorme. "O que é que faz?". "Vou representar a França no Festival da Eurovisão. Eu admiro imenso aquele português que ganhou o Festival de 2017". Começou assim. Ela gostou muito da canção [‘les eaux qui me gardent’] sobre o avô da minha namorada, um senegalês que morreu num desastre de avião no meio do oceano. Nunca se encontrou o corpo. Então, a Jenna escreveu uma letra muito bonita, que a Barbara adorou. E acabou por gravar o tema em Barcelona, foi giro. 

Já conhecias pessoalmente a Silvana Estrada?
Eu já conhecia a Silvana, o convite surgiu porque eu tinha a intenção de fazer uma canção de declaração de amor à Silvia Pérez Cruz, à sua voz e à inspiração que ela me trouxe durante todos estes anos. A ideia inicial era fazer um dueto com ela. Mas depois a canção ['De la mano de tu voz'] é tão claramente sobre ela, sou eu a falar sobre ela e ficou estranho pensar nela a cantar a própria canção. E então pensámos com o Leo que seria interessante ter alguém que tivesse esta admiração. Eu tinha estado em Madrid a apresentar o disco anterior ["bpm"] e a Silvana estava lá e eu convidei-a para cantar no meu show antes dela ter ganho o Grammy [Latino]. Ela veio cantar, tivemos uma boa química musical, o que é sempre essencial. Houve um momento em que começámos a falar da Silvia, por quem ela tem também um deslumbramento e acho que também foi importante na carreira dela. Era óbvio que tínhamos que a convidar. Ela aceitou, veio a Lisboa gravar, e a Lucia Fumero, que é catalã, tocou piano e que também é muito influenciada pela Silvia. Então, tornou-se uma banda que era uma seita de adoração à Silvia Pérez.

Quando te juntas pela primeira vez com alguém, não há o receio da coisa não resultar?
Sim, é como o sexo, suponho. Mas eu sou bastante fácil, tenho uma empatia natural com outro cantores, percebendo o espaço deles, o timbre, respeitá-los e encontrar o equilíbrio perfeito. Foram muito poucos os duetos que não funcionaram comigo. Há um respeito pelo outro que aprendi quando comecei a cantar com a minha irmã a partir dos três anos de idade. Respeitar o espaço do outro, os volumes do outro, ser bastante sensível. Até agora, em todos os duetos em que participei, tem havido essa sensibilidade mútua. 

O tema final, 'Al Llegar', é um reencontro com o Jorge Drexler...
O Jorge Drexler tem sido uma influência para mim desde que eu estava a estudar em Barcelona, em 2010. Ainda hoje considero-o o compositor mais iluminado, mais inteligente e mais poético da música contemporânea. Vi-o no Palau de la Música [Catalana], em Barcelona [o espaço está declarado como Património Cultural da UNESCO e foi selecionado no nosso artigo sobre "12 salas de espetáculos deslumbrantes" em todo o mundo que pode ler aqui]. Eu estava sentado na primeira fila, tinha 20 anos, e o Jorge Drexler estava com a banda dele. E ele perguntou ao público se alguém queria fazer um solo só por piada. E eu disse: "eu quero fazer um solo, chamem-me a mim". Ele chamou-me, levantei-me. O meu trompete vocal ouvia-se bastante bem. Ele gostou. Conheci-o nesse dia. "Ah, tu eras o do trompete, parabéns!". A partir de então, mantivémos o contacto. Contactou-me quando me viu na Eurovisão, ele gostou imenso da prestação. A partir daí, íamo-nos falando de vez em quando. Eu estava sempre a dizer-lhe que queria muito fazer um dueto com ele. E compusémos esta canção expressamente para ser cantada por ele. Mandei-lhe a canção, que ele adorou. Mas o problema foi a seguir, para arranjar espaço na agenda dele, num ano em que ele ganhou uma data de Grammys [Latinos, seis ao todo]. Eu pensei: "bem, isto vai ser muito difícil". Ele dizia-me: "nesse dia não posso, mas continua a chatear-me. Um dia vai ser possível. Estou só muito indisponível". Então, eu continuei a chateá-lo, que é uma coisa que detesto fazer. Um dia ele disse-me: "olha vou estar em Madrid das 5h às 7h no estúdio não sei quê. Queres vir?" Eu apanhei o voo, foi a primeira vez que deixei a minha filha, ela tinha ainda dois meses. E gravámos lá a voz dele finalmente. E foi assim que se materializou um dueto, mais um. Mais um sonho realizado, mais uma validação enquanto artista ter o Drexler a cantar no meu disco.

 

Viver em França permite-te ver Portugal com mais lucidez? Como é que olhas para o nosso país a partir de França?
Ainda estou entre os dois países. Não é o facto de estar em França que me faz ver Portugal com olhos tristes. Mesmo quando estou em Portugal, fico desanimado com a maneira como o país não apoia a sua cultura. Não existe qualquer tipo de incentivo para os artistas. Quando me perguntam: "o meu filho quer ir para a música, o que é que me aconselha?" Eu aconselho a "sair o mais rapidamente possível para fora daqui, porque aqui não há qualquer apoio". É muito difícil ser-se artista. Sou casado com uma francesa que tem o estatuto de artista, que apoia os artistas com base nas horas que fizeram no ano anterior. É um sistema que já existe há anos e anos, que Portugal fingiu que imitou, a que ninguém aderiu. Ou os que tentaram, desistiram, porque era um processo burocrático terrível. Era só areia para os olhos, não tinha qualquer funcionalidade fluída. Fingiu-se um estatuto de artista que nunca serviu para nada. Fico sempre desanimado. E não é com o povo, porque há um orgulho adjacente com os artistas da terra. O problema é mais com o governo e a falta de dinheiro no país e na cultura. Em Espanha não é assim, em França não é assim. Claro que são países com um PIB maior que o nosso. Mas é desencorajador. 

Vai haver duetos nos teus concertos no CCB e na Casa da Música?
Vai haver duetos muito especiais, mas ainda não vou revelar quais. Estou muito feliz com os duetos que vou ter em Lisboa e no Porto. Mas em Madrid e em Barcelona, vai haver uns duetos bonitos. A proposta do disco é ter as músicas arrumadas e bem feitas. Nos concertos, a ideia é destrui-las completamente e voltar a reconstrui-las a cada concerto de maneira diferente. Quero que haja improvisação dos músicos, piadas, intervenção do público. Quero que o concerto seja vivo. Os discos não são tão vivos assim. Tenho uma fobia à repetição no palco, sinto que a música tem que estar viva. Quando sou eu a cantar, quero fazer sempre coisas diferentes para não me aborrecer.   

Já vi isso. Ao vivo, és um traquinas.
Sim, sim, é verdade, o traquinas é uma boa definição. 

Sente-se o gosto que tens em estar em palco.
Muito, faço discos só para poder cantar ao vivo. Se não, nem fazia discos, só cantava em palco.  

 

Próximas atuações de Salvador Sobral em Portugal em 2023:
29 de setembro – showcase nos Armazéns do Chiado, Lisboa
12 de outubro - Casa da Cultura, Ílhavo
27 de outubro - Centro Cultural de Belém, Lisboa
15 de novembro - Casa da Música, Porto
25 de novembro – Cineteatro António Lamoso, Santa Maria da Feira
30 de novembro - Casa da Criatividade, São João da Madeira, Portugal