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Festa em grande de David Fonseca

Sofia Lisboa (ex-Silence 4), Bruno Nogueira, Manuela Azevedo e Camané também pisaram o palco do Coliseu dos Recreios.

Festa em grande de David Fonseca

Era David Fonseca o festejado no Coliseu dos Recreios, o homem que comemorava vinte anos de grande exposição pública na música, desde o arranque muito bem sucedido dos Silence 4. Mas foi ele que deu a prenda (que prenda!): um grande espetáculo de duas horas e quarenta minutos, repleto de momentos diversos e sempre com o enorme ânimo de David Fonseca. Hoje é muito difícil encontrar um artista ao vivo que consiga atingir este nível tão elevado.    

Acompanhado de mais quatro músicos (incluindo um guitarrista notável e o muito recrutado baterista Sérgio Nascimento), David Fonseca faz logo uma entrada vigorosa com Superstars, brindada de truques de grande show, incluindo uma simulação final da canção cujo renascimento merece uma catarse de chuva de papelinhos

De fato listado, David Fonseca promete um bolo no fecho - que afinal era o 'God Only Knows' dos Beach Boys, que é bem mais saboroso que os doces destas circunstâncias. Quando a música reacende, vai-se notando um rock pincelado de sintetizadores à The Cars enquanto David Fonseca se mostra muito mexido e com um à-vontade em palco contagiante, que não tinha há 20 anos. Livre da guitarra, dança com o suporte de microfone, balança energicamente com ele, vendo-se que está a passar um bom bocado, o que é bonito de assistir. 
   
David Fonseca só repousa para deixar o público cantar o refrão de 'Someone That Cannot Love' - "uma das músicas que mais toquei ao vivo". Cada espectador faz o seu karaoke pessoal e há quem semicerre os olhos para uma viagem no tempo lá muito dele.
 
A primeira convidada a aparecer é a espanhola Alice Wonder, que David Fonseca diz ter conhecido através do Instagram. Cantaram juntos 'Resist' e Wonder pôde maravilhar-nos com uma ginástica respiratória vocal idêntica à de Lorde.  
 
O espetáculo estava com um andamento tal que parecia que o leiriense estava em digressão mundial há 12 meses. Era proibido a vibração quebrar. Vinha aí 'Kiss Me, Oh Kiss Me', ritmada por muitas palmas do público, sucedida por 'U Know Who I Am', mais uma balada com umas curvaturas interessantes, onde David Fonseca, só com a sua guitarra, é trovador de rua capaz de tocar a balada no metro. Seguiu-se mais um slow inflamado de amor, 'Hold Still', desta vez na companhia da colega de muitos anos Rita Redshoes (outrora teclista da sua banda), antes de David Fonseca tirar uma foto ao público com as mãos no ar.
 
Covers é com David Fonseca, mesmo se for de Rod Stewart, o homem de quem o ex-Silence 4 não gosta de ouvir versões de Tom Waits. 'Da Ya Think I'm Sexy' é sabiamente agitado e embrulhado com 'Futuro Eu', já com a grande performer de palco Manuela Azevedo (dos Clã) a dar-lhe eloquência. De repente, estavam três membros do supergrupo Humanos em palco: David Fonseca, Manuela Azevedo e o baterista Sérgio Nascimento. Era, portanto, meio-caminho andado para se ouvir um tema da memorável banda de tributo a António Variações: em 'Muda de Vida', o centro do palco era da Manuela Azevedo.

O outro Humano não demorou muito, Camané ele mesmo, que consultou a cábula para o dueto em Hoje Eu Não Sou, e tomou a voz principal na popular Maria Albertina. Seguem-se mais provérbios inventados por António Variações na voz de Camané, como o êxito dos anos 80 do homem que arquitetou um túnel entre Braga e Nova Iorque, 'O Corpo É Que Paga', que o público conhece de uma ponta à outra.
 
'Ela Gosta de Mim Assim' implicou um pequeno ensaio de David Fonseca com o público no refrão e mereceu a entrada de rompante do humorista Bruno Nogueira, muito ovacionado, que tentou cantá-la, enquanto a magistralmente tocada guitarra elétrica parecia embevecida com o afro-pop dos Vampire Weekend.   

O espetáculo no Coliseu de Lisboa era um fartote de surpresas. Houve de tudo: duas dançarinas do ventre a fazerem sombra sobre duas telas rosadas; David Fonseca a arranhar a guitarra elétrica no meio dos balcões, a 30 metro do palco; ou fragmentos de 'Riders on the Storm' dos Doors em 'Stop 4 a Minute'.

Para o arrebatamento final, teria que haver festança e muito trabalho nos sintetizadores. 'What Life Is For' é um tema que teria dado jeito aos Killers, que não descartariam também os efeitos de linhas de lâmpadas a faiscar. Em consonância, David Fonseca finge não saber muito bem cantar 'I Just Can't Get Enough' dos Depeche Mode. Mas era só bluff. O tema de 1981 iria ser mesmo tocado à séria enquanto dois bonecos de cães que animaram o palco antes de David Fonseca chutavam bolas de ar gigantes para o público. 'The 80s' fecha o set em alta.
 
O regresso a palco faz-se sob luzes avermelhadas, para a balada futurista 'Slow Karma', tão acalorada que David Fonseca tira o casaco e sobe a manga direita da camisola para mostrar o braço musculado. António Variações volta a viver neste concerto, no espírito do ex-Silence 4, quanto este mostra o mesmo atrevimento que o cantor minhoto teve em arrockalhar o reportório de Amália Rodrigues (como foi o caso de 'Povo Que Lavas no Rio'), para investir noutro clássico: 'Barco Negro'. A imagem do relógio de ponteiros prenuncia a despedida em 'Adeus, Não Afastes Os Teus Olhos Dos Meus', mas o que já era um quarto de dormir transforma-se em discoteca quando descem oito bolas de espelhos, em rotação tal como David Fonseca, no synth-disco de 'The Raging Light'.

O segundo encore é tocado solitaria e corajosamente no meio da plateia por David Fonseca, sem seguranças como vemos com as estrelas internacionais. 'Song to the Siren' de Tim Buckley (revivido na voz de Liz Fraser para os This Mortal Coil) é interpretado, com o cantor a segurar uma lâmpada junto à sua face - um talento de Peter Murphy dos Bauhaus. Se eram 20 anos que se comemoravam, era tempo de ouvir temas do álbum de estreia dos Silence 4, "Silence Becomes It" (de 1998). 'Eu Não Sei Dizer' é lembrado, seguindo-se o tema que os revelou 'Borrow', que a meio é continuado em palco, com a surpresa não anunciada em palco, Sofia Lisboa, a recuperar a dupla vocal dos Silence 4. A baquetada de David Fonseca nos pratos do kit de pé de Sérgio Nascimento em 'Oh My Heart' finalizava o serviço e uma noite de glória.