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Ana Bacalhau: "quero que o novo álbum reflita quem sou depois disto tudo"

Hoje conhecemos 'Memória', o primeiro single do segundo disco da cantora, quatro anos depois da estreia em "Nome Próprio".

Ana Bacalhau: "quero que o novo álbum reflita quem sou depois disto tudo"
Arlindo Camacho

 


Ana Bacalhau está de volta com música nova. 'Memória' é a primeira amostra do segundo disco que a cantora assina a solo e o sucessor de "Nome Próprio", editado em 2017. A data de lançamento do novo álbum ainda não é conhecida, mas sabemos será ainda este ano.

'Memória' - já disponível em todas as plataformas digitais - foi escrita por João Direitinho, Guilherme Alface e Mário Monginho, elementos dos ÁTOA, e teve Twins a tratar da magia da produção, como já fez com outros artistas como Fernando Daniel, Murta ou Dengaz.

Arlindo Camacho e Mariana Norton sentaram-se nas cadeiras de realização do vídeo que também foi lançado esta sexta-feira

Créditos apresentados, vamos à conversa que andou à volta da canção, do novo álbum e, claro, da "nova normalidade" a que o mundo se vai acostumando aos poucos.


É inevitável que a primeira pergunta passe pelo rescaldo destes meses de confinamento. Como é que viveste esta experiência humana e global que virou o mundo do avesso?  


Foi um misto de emoções. Creio que isso aconteceu com todos nós. Primeiro, foi a fase de adaptação. Estava a tentar fazer sentido numa situação nova, um pouco surreal, grave e que estava a ameaçar a vida. Senti raiva, frustração, medo mas também alguma esperança. Senti muita coisa. Felizmente, como tinha de dar atenção à minha filha [Luz], e toda a gente sabe que uma criança de três anos pede atenção constante, não entrei em loop, como se costuma dizer. Não construí pensamentos obsessivos. Consegui afastar-me desse estado de espírito e do sentimento de desesperança. Sorri muito com ela. Foi muito importante para voltar à vida.

Mantiveste a tua luzinha acesa. Uma luz de presença...


Exato! (risos) 

Esta situação estimulou a tua criatividade? Apeteceu-te compor, escrever? Ou, por outro lado, teve poder para bloquear-te?

As duas coisas. Numa primeira fase, senti-me bloqueada. Precisava de sentir e de perceber o que é que se estava a passar comigo. Nessa altura, não consegui deitar nada cá para fora, ainda precisava de olhar para dentro, de arrumar-me. Um mês depois de estar em casa, quando já tinha a distância suficiente para olhar [para a situação] com várias perspetivas - e não falo do distanciamento social mas do distanciamento psicológico que é necessário para criar - comecei a sentir necessidade de expressar-me, de deitar o que passei para fora, de cantar. Aconteceu quando as emoções estavam mais arrumadas. Saíram-me duas canções. Posso dizer que sim, que criei.

E quando é que vamos poder ouvi-las? Já sabes? 

Ainda não sei. Antes de tudo isto acontecer, estava no processo de gravar um disco e acabei por ficar literalmente meio. O álbum que vai sair já será muito diferente do que estava previsto. Ainda vou ter de refletir mas acho que ambas as canções têm potencial para entrar no disco. Não tenho nenhuma favorita. (risos) Há outras canções, de outros autores que escreveram para mim, das quais gosto muito. Vou ter de escolher. Quero que seja um álbum que reflita não só o que passei mas também quem é que eu sou depois disto tudo. Acho que, pelo menos, uma das canções vai entrar no álbum. 

A música foi uma grande uma aliada do nosso bem-estar emocional e um elo incontestável entre as pessoas. Destacas algum momento musical que te tenha emocionado nestes últimos meses?


À semelhança do que aconteceu em Itália, vi imagens cá, em Portugal, que me emocionaram muito. Houve um bairro inteiro, creio que no Porto, que, todas as noites, cantava uma música portuguesa. Emocionou-me ver as imagens e perceber que a música, que é o universo do qual faço parte, ajuda, de facto, as pessoas. Não é um luxo, uma extravagância. A música ajuda mesmo a manter uma certa sanidade mental, tal como as artes, a cultura. Sem elas estamos só a sobreviver. Precisamos disso para viver. É com a arte e a cultura que nos distinguimos dos outros seres. É o que nos torna humanos. Ainda me embarga um pouco a voz, perceber que a música foi utilizada para sublimar a dor e aproximar as pessoas que não podiam estar juntas fisicamente mas que, de alguma forma, estiveram unidas

O mais irónico é que os palcos foram os primeiros a ficar vazios. Agora que as salas de espetáculo vão reabrir, ainda que com metade da lotação e a obrigatoriedade do uso de máscara, como é que olhas para essa reabertura e para as consequências provocadas pela pandemia no setor?

É muito difícil. Quando soube quais seriam as primeiras regras senti alguma frustração. Eram regras ainda mais castigadoras. A questão da disposição das filas, por exemplo. Numa plateia de 400 lugares podiam estar apenas 40 pessoas. Era o mesmo que dizer: "vocês não podem voltar ao trabalho". Não era viável. Senti frustração com a injustiça no tratamento da questão nos diferentes setores económicos. O exemplo óbvio é que os aviões podem voar cheios. A menos que haja estudos científicos que me digam que o risco de contágio é menor, e se assim for retiro o que disse, a probabilidade de contágio num avião ou numa sala de espetáculos parece-me a mesma. Não faz sentido. Pareceu-me que houve um favorecimento de alguns setores económicos em detrimento de outros. Agora, e depois de uma reavaliação, as salas já podem ter metade da lotação. Apesar de continuar a ser economicamente pouco viável, temos de arranjar maneiras de andar para a frente. Há outras soluções para remediar a questão, como o drive-in ou os palcos móveis. Eu vou dar um concerto num palco móvel [nas festas de Benfica], por exemplo. O problema não é só no setor da música, os restaurantes também estão a meio gás, só podem ter meia casa. São os setores que congregam muitas pessoas, claro que devem existir cuidados especiais. Eu percebo isso. Retomar a atividade em pleno vai ser difícil,  temos de nos adaptar às novas regras. Estou muito contente por dar um concerto móvel em junho mas continuo preocupada porque tinha uns 30 concertos marcados para este ano. Não falo por mim, mas dou a voz pela equipa que me acompanha. Sei que há imensas equipas que acompanham os artistas que deixaram de ter concertos este ano. O que me preocupa são essas pessoas: as equipas técnicas, os outros músicos que acompanham os artistas ou as agências que marcam os concertos e que dão trabalho a muita gente. Temos de acudir essas pessoas. Ao mesmo tempo em que arranjamos soluções para termos algum trabalho e para voltarmos aos palcos - que é o que me move - temos de encontrar soluções para ajudar esses profissionais.

Quanto ao uso da máscara e ao distanciamento entre as pessoas, achas que a "nova normalidade" poderá beliscar a ideia de conexão que também é a essência da música ao vivo?


Acho que vai haver um momento de estranheza, mas [em situações normais] as salas, muitas vezes, estão escuras, o que faz com que dificilmente consigamos olhar para os rostos das pessoas e ver o que estão a sentir. Vemos apenas as que estão na fila da frente. Acho que a eletricidade, aquela energia carregada, vai continuar a existir mesmo com máscaras e distanciamento. É uma conexão que está para lá das palavras, das expressões faciais. A música é uma vibração que nos faz cócegas no corpo e alma. Isso vai sempre existir.

'Memória' é o nome da nova tua canção e o primeiro single do tal disco que ficou a meio. João Direitinho, Guilherme Alface e Mário Monginho (dos ÁTOA) foram os autores. Porquê a escolha destes músicos para fiéis porta-vozes das tuas emoções?

Para este disco queria um caminho, uma canção assumidamente mais pop. Tenho gostado muito das canções que eles têm escrito, não só das canções que escrevem para eles mas também para outros. Sempre gostei de trabalhar com diferentes gerações de autores. É importante para mim. De certa forma, tentei aceder a esta geração que tem muito para dizer, para dar e que trabalha de uma forma diferente daquilo a que estou habituada. Isso interessa-me, acaba por constituir um desafio. Atrevi-me a pedir-lhes. Liguei-lhes. Eles ficaram muito contentes e eu fiquei supercontente. Passado pouco tempo, isto em outubro ou novembro, alguns meses antes da pandemia, enviaram-me um rascunho que fez logo clique comigo. Eu, que ainda não tinha um single escolhido, percebi que era precisamente aquilo que queria dizer. Fez clique com uma fase em que tentava perceber quem fui, quem era e no que me estava a tornar. Estava a rasgar uma série de coisas em mim que já não faziam sentido. Aquela busca e o percurso da canção fizeram clique. Senti que era aquilo. Gravei a canção em janeiro e o videoclipe foi feito no início de março, mesmo antes de entrarmos em confinamento. Quando o vídeo foi pensado ninguém podia antever o que acabaria por acontecer, mas a verdade é que o resultado acabou por refletir o que veio a seguir. Depois disto tudo, tive ainda mais certeza de ter acertado. A canção e o videoclipe fazem ainda mais sentido. A história do vídeo passa-se numa casa abandonada onde estão três personagens, todas elas interpretadas por mim, em cada uma das divisões. Cada uma das personagens está presa, a ultrapassar demónios e problemas, numa casa vazia. Faz todo o sentido. Até tenho medo que as pessoas pensem que foi um aproveitamento da situação, mas não foi nada disso. Não podíamos adivinhar o que estava prestes a acontecer.
 




Entregaste a produção do tema ao Twins. Como é que foste acompanhando o processo? 

Eu estive um ano, o tal período tumultuoso de que falei, a tentar perceber qual era o meu caminho. A canção [O Erro Mais Bonito] que fiz com o Diogo Piçarra ajudou-me imenso. Fiz a canção com o Diogo precisamente porque, sendo produzida por ele, sabia que teria uma sonoridade muito diferente da que já tinha trabalhado. Quis colocar-me nesse lugar para perceber o que podia ou não fazer. A canção com o Diogo correu muito bem. Adorei fazê-la. Então, andei um ano à procura não só do meu caminho, como artista a solo, mas também do produtor certo. Alguém com um perfil muito especial. Queria encontrar alguém que entendesse os instrumentos físicos e estivesse à vontade com a eletrónica. Pensei muito no assunto, andei a experimentar até que cheguei ao Twins que, além de ter produzido esta música, está a produzir mais temas do disco. Estou a adorar trabalhar com ele. Tem o perfil que eu precisava, que queria e que imaginava. Fizemos o 'Memória' sozinhos, só os dois, no estúdio dele. Ele trabalhava o tema e eu ia dando uns lamirés quando sentia que era necessário. Ele também puxou por mim. Ele sabe puxar por mim e levar-me para sítios onde nunca tinha ido com a voz e com a interpretação. Está a ser uma experiência muito enriquecedora. 

No teu primeiro disco a solo, "Nome Próprio", também estavas à procura de um caminho. Este caminho de que falas agora é o caminho ou é mais uma parte de uma longa estrada que ainda poderá passar por outros lugares?


Talvez possa ser as duas coisas. Este disco é o que sou agora. A música que estou a fazer reflete-me a cem por cento. Daqui a três, quatro ou cinco anos vou ser outra pessoa. O que fizer nessa altura vai refletir isso mesmo. Vou estar sempre à procura de alguma coisa, à minha procura. Como artista a solo, a matéria prima mais importante que tenho sou eu. Tenho andado a correr atrás de mim, a tentar perceber para onde preciso de ir, para onde quero ir e aonde estou. Este disco vai refletir isso, tal como o anterior refletiu o período em que ainda estava nos Deolinda. Quando fiz o primeiro álbum pensava que os Deolinda iam continuar. Quando fizemos uma pausa, lancei-me nessa busca de artista a solo. Foi a fase em que cortei o cordão umbilical com aquilo que já tinha feito no passado e comecei a criar uma ligação forte e também umbilical comigo mesma. É essa a construção que faço, sem pudor, à frente de toda a gente. É assim que concebo a obra musical, a obra artística. Alguém que se expõe e que mostra que está a atravessar fases diferentes.

Uma espécie de "o meu querido diário"...

Sim, é. Se morrer amanhã, quero deixar cá o que me representa bem. Quero deixar uma obra que me possa refletir, que possa contar quem fui. Vai ser a minha música a falar por mim. É isso que quero preservar e defender a todo o custo.

Voltando ao início da conversa. Quando estávamos confinados, usaste as redes sociais para escrever a frase: "há uma luz que nunca se apaga". Há muitas luzes à espreita no futuro? 


Sim. Várias luzes. A Luz, a minha filha, obviamente. Os nossos filhos são o nosso foco para o futuro. São a nossa continuação. A música e a arte são formas de nos perpetuarmos e também são luzes. Para mim, a luz é vida e a escuridão é morte. Há vida, desde que haja um fio de luz, seja através dos filhos, das nossas obras, do que fazemos, do que deixamos profissionalmente ou através dos nossos gestos, da nossa postura, do que fazemos de bom ou mau ao outros e a nós próprios.