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Salvador Sobral: "sou muito inquieto"

Já saiu o seu terceiro álbum, "bpm", motivo para a entrevista ao cantor.

Salvador Sobral: "sou muito inquieto"
Caroline Deruas (cortesia Warner Music)

Salvador Sobral é um cantor com o bicho carpinteiro de criativo. Cada segundo que respira são frações de imprevisibilidade até para ele próprio, como um ator que desobedece pontualmente ao guião, porque o que tem para dar naquele momento não cabe nas indicações do papel. 

De um ponto vista alargado a um ciclo temporal, a necessidade de metamorfose de Salvador Sobral é satisfeita neste novo álbum, "bpm", com um som mais eletrizado, uma banda reformulada e um valente incremento do papel autoral do cantor, que assume as composições de pleno direito, a meias com o produtor, braço direito e amigo Leo Aldrey.

Salvador Sobral canta e co-dirige a sua música como um amante de jazz que, quando entra numa loja de discos, vasculha quase todas as secções. Saltita de género e de idioma, sempre com o coração no jazz a bater a bom ritmo. Enquanto a música matura, a infância traquinas de Salvador Sobral permanece viva em "bpm".

O homem que está na história da música portuguesa como o seu primeiro representante a vencer um Festival da Eurovisão, com o mimoso 'Amar pelos Dois' (composto pela irmã Luísa Sobral), entra hoje no terceiro capítulo discográfico de uma obra aberta a um futuro ainda melhor.

O terceiro álbum de Salvador Sobral, “bpm”, é evidentemente o mote para esta entrevista ao cantor.       

Neste novo disco, “bpm”, falas de inquietação em mais do que um tema. És uma pessoa inquieta?
Muito! Artisticamente, também. Estou sempre à procura de uma cena com diferentes opções, ora a chanson française, ora a música cubana, ora o hip hop tuga. Sou muito inquieto. Quando estive doente, perdi muito tempo parado. 

Tens um papel ativo na composição nas músicas deste álbum, com o apoio do produtor Leo Aldrey. É a tua voz que se adapta às letras que escreves, ou são as letras que se adaptam à tua voz? Quem manda em quem?
As letras nasceram sempre primeiro, depois é que vinha a interpretação. Mas, às vezes, estamos a compor uma roda de acordes e eu estou a pensar numa melodia: "isto está muito baixo, 'bora aí subir um ou dois tons. O Leo já conhece bem a amplitude da minha voz e os sítios onde ela está confortável. Por isso, não faz nada disso. Faz uns saltos melódicos dificílimos para eu me esforçar. Neste disco, há muitos saltos melódicos difíceis para a voz. É o tal desconforto que eu gosto, tenho que estar em forma para cantar. O baterista da nossa banda, o Bruno Pedroso, já me dizia: "com este disco, tenho que estar mesmo em forma quando formos para a estrada". É um disco tecnicamente difícil de tocar.

 

Sentes que a tua carreira é um permanente crescimento de auto-confiança?
Gostava de dizer que sim, mas vou estar sempre à espera da aceitação externa. Nunca vou dizer: "ah, cheguei a este sítio muito bom e as pessoas já conhecem o meu talento, já não preciso de fazer mais nada". Ser artista é uma busca constante pela aceitação exterior, pelos elogios do público. Eu dependo deles também, infelizmente. Tenho a minha auto-confiança enquanto cantor. Faço disso as minhas valências. Mas há outras áreas exteriores ao canto e que me causam inseguranças e que me fazem duvidar de mim mesmo. A dependência da validação dos outros vai sempre existir. Ainda bem, porque é preciso motivação. Os rappers estão sempre a dizer que os haters é que estão sempre a alimentar-lhes para continuarem. Suponho que isso é uma realidade.

Imaginas a tua música sem o piano? 
Estou a pensar nos projetos que tenho vindo a fazer, só um para o Lisbon Film Festival - em que passei dois filmes mexicanos no Tivoli - em que formei uma banda tradicional de música tradicional mexicana, de rancheras e boleros mexicanos, e não tinha piano. Lembro-me de entrar no palco e de pensar: "f#d$-se, onde está o piano?". "É a primeira vez que estou a fazer um projeto sem o piano". Recorro sempre ao piano, porque é aí que componho. Mas adorei fazer o projeto que não tinha o piano. Se calhar, hei de repetir no futuro para outro projeto.

 

O Abe Rábade está incrível neste álbum, não está? 
Sim, sim! E atenção que ele não é o pianista da banda. O pianista da banda é o Max Agnas, que é sueco. Ele ligou-me a dois dias de irmos para estúdio a dizer-me que estava com uma rutura de ligamentos no braço, que ia ser operado e que não podia gravar o disco. Lembrei-me do Abe porque já tinha atuado com o gajo na Galiza. Tínhamos tido uma boa ligação musical, que é uma coisa rara. Comunicávamos bem no palco e musicalmente. É um pianista de jazz mas tem a mente aberta a tudo o que se passa de novo. Liguei desesperado ao gajo: "tens que me vir ajudar, fiquei sem pianista". Veio no dia seguinte a Lisboa, aprendeu as canções, quis saber das letras, que é uma coisa de se louvar. Escreveu partes em casa. Dedicou-se com intensidade ao disco. É curioso porque o Abe é um bom músico de estúdio e o Max é melhor para os concertos e para a espontaneidade do momento. Tive o melhor dos dois mundos: o Abe para gravar o disco e o Max para tocar ao vivo.   

Tu exploras acima de tudo a voz, mas o instrumento onde te sentes melhor é o piano, não é?
É a única coisa que sei tocar. Não sei fazer um solo de guitarra. Só sei tocar piano e muito mal. O piano é um instrumento que me causa muita frustração. Fui muito mimado pela voz, porque sempre foi fácil para mim cantar. De repente, quando não consigo fazer uma coisa com o piano, não estou habituado a lidar com essa frustração. Devia tocar muito melhor do que toco. Só me consigo defender minimamente.

 

Deste também muito trabalho ao guitarrista André Santos. Ele simplesmente se impôs ou foram as músicas que o convocaram para horas extraordinárias? 
Eu tinha participado com ele noutros projetos. A coisa que eu mais gosto nele é o timbre que tem na guitarra que faz sonhar, que é muito particular dele. Ele tem várias texturas que faz com os pedais e mesmo com a guitarra, e tem muito bom gosto. Ao falar com o Leo na altura de compor as canções, senti que queria trazer o André para a banda. Quando o Júlio [Resende] saiu, eu quis fazer uma reforma grande na banda e mudar o som. Para procurar uma identidade sonora nova, acho que o André foi essencial. Há uma canção que tem sete pistas diferentes de guitarra. Portanto, a guitarra é uma grande parte nesta nova identidade. 

Ter uma letra nas tuas mãos escrita pela tua irmã (Luísa Sobral) é já um trabalho teleguiado para a tua voz? 
Não era essa a intenção ao início, não queríamos ter mais ninguém. Mas compusemos aquela canção, como se fosse automático. No 'Fui Ver o Meu Amor', pensei: "aqui ficava muito bem uma letra da minha irmã. De certeza que ela faria aqui um bom trabalho". É a primeira vez que componho a música e ela faz a letra. Acho que já é uma tradição que devemos manter.  

Por falar em bpm, o teu coração tem batido muito e bem? 
Felizmente, tem obedecido. Mesmo quando jogo futebol, ele percebe que estamos num registo diferente e acompanha-me. Já conheci outra realidade. A possibilidade de fazer uma vida normal é bastante gratificante.

 

É difícil para ti comandar equipas?
Não tenho a personalidade de líder. Mas a vida foi-me obrigando a ser o cantor líder dos projetos. Fui-me obrigando a ter algum tipo de influência nas decisões que tomamos enquanto banda. Gosto que cada um tenha uma opinião e a sua maneira de ver as coisas. O que eu faço é fingir que oiço as opiniões deles e depois tomo as minhas decisões. "Como é que acham que devia ficar este arranjo?". "Eu acho isto, isto e isto". E depois a minha opinião é que ganha. O Bruno Pedroso já tem uns anos disto e eu respeito muito a opinião dele.

Pelo menos, ficas a pensar nessas opiniões.
Sempre. Há pessoas que me fazem pensar com o que dizem, como a minha irmã. Aquilo fica-me na cabeça, mesmo que eu rejeite à partida. Fico a pensar muito naquilo e acabo por seguir o conselho dela.

Compreendes a polémica com o facto da canção vencedora do Festival da Canção - 'Love Is on My Side' dos Black Mamba - ser em inglês?
Sinceramente, a língua em que se canta é-me completamente indiferente. Sou tocado por uma música em russo, como uma música em português. Gosto da música dos Black Mamba. Eles tocam bem. O gajo canta muito bem. A música está bem feita. É uma música pop bem construída. Qual é a cena da língua? A língua é só uma expressão de territorialismo.

 

Aliás, tu demonstras esse desprendimento ao cantar em várias línguas, seja inglês, castelhano ou português.
Olho para as línguas como um guitarrista olha para os pedais. São só diferentes recursos e diferentes sons que podem sair da tua boca, diferentes expressões idiomáticas, diferentes metáforas que podes usar em inglês mas não em português.

Sentes vontade de pôr de lado dos alinhamentos dos espetáculos o tema com que ganhaste o Festival Eurovisão, 'Amar pelos Dois'? 
Não. Toco o 'Amar pelos Dois' quando sinto que tenho que o interpretar. Quando não me apetece, não toco. Felizmente, essa decisão é minha. Quando vou apresentar o disco novo, não vou tocar o 'Amar pelos Dois'. Um escritor quando vai apresentar um livro, não vai incluir um capítulo de um livro anterior. Quando vou a um país onde nunca tinha atuado, como a Islândia, claro que canto o 'Amar pelos Dois'. As pessoas tinham vontade de o ouvir, eu tinha vontade de o tocar. No dia em que tocar uma coisa que não me apetece, posso desistir disto e vou fazer outra coisa. Vou traduzir filmes de sueco para português. Se eu cantasse o 'Amar pelos Dois' por obrigação, as pessoas iriam sentir isso. Acho que não é bom para ninguém, nem para mim, que não estou a ser honesto, nem para as pessoas por que estou a enganá-las. A premissa é tocar quando sentir que a devo tocar. 

Neste disco, "bpm", é usado o rajão, um instrumento de cordas típico da ilha da Madeira. Qual é o instrumento menos ortodoxo que gostarias de usar um dia ao serviço da tua música e que ainda não usaste? 
Gostava de ter um (órgão) Hammond de verdade tocado com os pés. Não tive. Tive teclados que imitam órgãos, mas nunca tive um Hammond de verdade tocado com os pés, estilo Jimmy Smith. Gosto do som do clarinete baixo que tem uma tromba enorme que chega ao chão. Tem um som muito engraçado, acho que o (António) Zambujo já usou isso. Porque não um clarinete baixo (também conhecido como clarone).

 

Se tivesses uma carta branca da história, que superbanda de músicos lendários de jazz escolherias? 
No piano teria que ter o Ahmad Jamal, no baixo o Charlie Haden, na bateria o Greg Hutchinson e eu a cantar e a dizer parvoíces. Ou se calhar, tirava o Greg Hutchinson e punha o Brian Blade na bateria, que toca na banda do (saxofonista) Joshua Redman, com o (pianista) Brad Mehldau e o (baixista) Christian McBride. Isso é que é um bandaço. E existe! 

Salvador Sobral é acompanhado em "bpm" pelo pianista Abe Rábade, pelo guitarrista André Santos, pelo contrabaixista André Rosinha, pelo baterista Bruno Pedroso e ainda pelo produtor Leo Aldrey nos teclados e "ambientes sonoros".