Ainda não tem a nossa APP? Pode fazer o download aqui.

Sónia Tavares sobre o grandioso "Coral": "foi inspirado no mar, no povo"

A voz dos Gift conversou connosco sobre "Coral", o novo álbum do quarteto de Alcobaça.

Sónia Tavares sobre o grandioso "Coral": "foi inspirado no mar, no povo"
Foto Promocional "Coral"

É grandioso e belo. "Coral" - o mais recente disco dos Gift - é agora de quem o quiser escutar. O novo álbum do quarteto português chegou com um cuidado extremo na eletrónica, brilhantemente aliado à grandeza de um sumptuoso coro clássico de 48 vozes (gravadas em Viena de Áustria). Foi o coro que conduziu os Gift - eternos exploradores - nesta prazerosa e intensa odisseia sonora. Mas há mais. As raízes, a portugalidade, as influências da personalidade Gift ou a memória coletiva portuguesa também estão na narrativa complexa de "Coral". Damos um exemplo: entre muitos outros nomes que integram o coro clássico presente em todas as faixas, destaca-se a colaboração de três das vozes fundadoras do grupo Gaiteiros de Lisboa (José Manuel David, Carlos Guerreiro e Rui Vaz). Os três alumiam a homenagem que o grupo quis fazer às memórias da canção de intervenção. Um sentido (e arrepiante) tributo que não é único. Há mais. E há também reminiscências de outros mundos - imaginados ou não. o profano, há o "sacralizado" ainda que subjetivo, o mitológico. Há o novo e o antigo. Há lamento, um regresso, um desabafo, um adágio e tanto mais.

A rebeldia criativa e multifacetada do grupo português permanece ávida e intacta naquele que é o décimo disco de Sónia Tavares, Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro. "Coral" toca-nos. Mexe connosco. Revolve-nos, embala-nos. Transfigura o que nos rodeia quando o escutamos. O mergulho nas atmosferas é profundo, íntimo, pessoal. 

O processo de criação conta com nomes como Bernat Vivancos (compositor), Bronquio (músico e produtor), Ed is Dead (produtor de eletrónica), Bogdan Raczynski (produtor de eletrónica, conhecido por trabalhar com a islandesa Björk), Michal Juraszek (maestro), Pedro Marques (arranjador) e - para o toque tradicional português - os Pauliteiros de Miranda (percussão).

O álbum, que está nas lojas e plataformas digitais, é composto por 12 faixas. A composição e a produção são assinadas por Nuno Gonçalves e Sónia Tavares.

A 1 de dezembro, os Gift atuam na Casa da Música, no Porto. No dia 2, sobem ao palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. A 10 de dezembro, o quarteto atua no Teatro Municipal de Bragança e no dia 17 no Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre.

No texto que apresenta o disco, lemos que "Coral" foi um "trabalho suado, longo e feito de avanços e recuos". Como é que foi o processo criativo deste disco?

A ideia de fazer um disco como o "Coral" surgiu antes da pandemia. O Nuno [Gonçalves] já tinha dito para fazermos algo com vozes. Tinha aflorado a ideia de usarmos mais vozes do que instrumentos. O mais complicado foi irmos dessa ideia inicial até ao resultado final. Pelo meio meteu-se a pandemia e, com isso, ficámos impedidos de fazer um monte de coisas, como viajar para gravarmos as vozes, por exemplo. Como tínhamos prazos para cumprir, ainda tentámos gravar as vozes em Portugal, usando, claro, menos vozes, menos pessoas. Percebemos, por tentativa e erro, que só 10 ou 15 pessoas não nos chegavam. Tivemos de esperar que tudo acalmasse no mundo para irmos à Áustria, isto num curto espaço de tempo, gravar o coro final, com cerca de 50 pessoas. 

A Áustria é onde estes coros estão habituados a trabalhar e a gravar. São músicos de gravação, de estúdio. Estão habituados a fazer este tipo de gravações para várias produções, filmes. Percebemos que a nossa resposta estava ali. Foi no primeiro ensaio, já na Áustria, que percebemos como é que o "Coral" ia soar. Até essa altura estava apenas na nossa cabeça. Ainda não tínhamos tido a oportunidade de experimentar. Como não são instrumentos, era difícil reproduzir em computador. Foi um processo difícil, mas o resultado ultrapassou todas as peripécias e todos os obstáculos que estavam no caminho.     

Que impressões é que trocaram na fase inicial? 

O disco foi-se construindo. À medida que íamos perdendo algumas coisas, íamos ganhando outras. De repente, percebemos que, em primeiro lugar, tínhamos de pôr as vozes a soar e só depois é que podíamos partir para a parte eletrónica. Ou seja, fizemos o caminho inverso ao que costumamos fazer com as orquestras de cordas que também gravamos lá fora. Percebemos que o caminho não era esse. "Coral", como o nome indica, são as vozes. São as vozes que fazem sentido e não o contrário. A eletrónica só veio abrilhantar as canções. 

Fomos experimentando as várias fórmulas e o disco foi sendo construído. À medida que as músicas iam pedindo mais alguma coisa, nós íamos acrescentando. Este disco conduziu-nos. Tínhamos a ideia de como queríamos que o álbum soasse mas não sabíamos se seria possível e como seria possível. Fomos construindo o disco. Fomos limando as arestas através da tentativa e do erro.


No início, e como sempre, as ideias surgem de uma forma muito básica, muito simples. Às vezes, surgem só com uma melodia de piano ou com três ou quatro palavras. As palavras são o mote para escrevermos uma canção. O processo inicial acaba por ser mais ou menos igual. Começámos a escrever em português e o processo fluiu. Não foi muito pensado. A uma certa altura, percebemos que queríamos e que fazia sentido introduzir alguns apontamentos das nossas raízes, da música tradicional portuguesa, além das nossas influências e das raízes das nossas influências. Também são portuguesas. São influências que passam pelo Fausto, pela Sétima Legião, pelos Madredeus, pelos GNR ou pelos Heróis do Mar. Quisemos celebrar, à nossa maneira, esses compositores, essas bandas. Faz sentido para nós. Ouvimos as canções e lembramo-nos deles. É um disco que, apesar de compilar o que nós somos, resume aquilo que potencialmente podemos vir a ser no futuro. Quisemos ir um pouco mais longe e explorar "mares nunca dantes navegados" pelos Gift. 

The Gift em 2022...

Exatamente. É a representação das nossas múltiplas personalidades. Dos momentos mais íntimos aos mais explosivos. Da eletrónica à música clássica. Sempre com as canções presentes. Nunca fugimos ao formato da canção. Gostamos de fazer canções. Quanto mais bonitas, melhor. É isso tudo, apurado e com o coro que deu forma a todo este projeto.               

"Coral" é uma bonita e equilibrada fusão de diferentes atmosferas. Há uma sensação híbrida entre o sagrado e o profano, o novo e o antigo. Como foi equilibrar todas estas camadas? 

É um disco complexo que vai desde a participação dos Pauliteiros de Miranda ao grande compositor catalão Bernat Vivancos. Podia ser um pequeno imbróglio. (risos) Mas não. As coisas já faziam sentido nas nossas cabeças. Se transparecerem para as pessoas com esse equilíbrio, a nossa missão está cumprida. Era mesmo isso que queríamos. Queríamos encontrar esse equilíbrio, dando protagonismo às vozes. As vozes são o esqueleto deste disco.     

As vozes do coro e a tua. Na faixa 'Cancun', cantas de uma forma que lembra uma oração. Uma oração sussurrada. Há ali qualquer coisa de sagrado num ambiente mais profano... 

A religião, o catolicismo e as tradições correm no sangue português. Estão também nas nossas raízes, ainda que não nos influenciem diretamente. Quando chamamos Portugal para as nossas canções é quase impossível dissociá-lo, de certa forma, da religião. Mas a verdade é que considero este disco um pouco pagão. (risos) Foi inspirado no mar, no povo. Isso nota-se até na forma como soam as canções. Há canções que foram imaginadas com a voz dos homens, dos trabalhadores. Canções que existem com as memórias que temos das canções mais interventivas. Foi por essa razão que chamámos três membros fundadores dos Gaiteiros de Lisboa [José Manuel David, Carlos Guerreiro e Rui Vaz]. Convidámo-los para darem uma voz portuguesa às canções. Também sou muito ligada aos mitos da cultura portuguesa. Há muitas coisas interessantes nas nossas histórias, nas nossas tradições e na nossa mitologia. Acho que isso também está implícito neste álbum. Dito assim, parece uma grande sopa de letras, mas acho que tudo faz sentido quando ouvimos o disco. (risos) Tudo isto acaba por ser uma espiral. É uma modernidade antiga.  

Vocês mostraram o "Coral" em exclusivo aos subscritores da vossa aplicação, da REV. Como foram as reações?

Tivemos ótimas reações. As pessoas que estão na [REV] seguem-nos há muitos anos e sempre com muito carinho. São pessoas que recebem o que vem de nós sem saberem o que lhes vamos dar. Aconteceu isso com a REV. Assinaram a aplicação sem saberem como seria, se valeria a pena. Essas pessoas merecem estes pequenos mimos. Ouviram o disco em primeira mão, viram o documentário que acompanha o álbum, viram em direto o concerto de estreia [da digressão Coral] que demos no Cine-Teatro, em Alcobaça, concerto que também foi gravado. São pessoas que estão muito perto de nós, que nos acompanham e que nos motivam para continuarmos a fazer as coisas da forma como fazemos.  
       
Como é que estão a transpor a grandeza de "Coral" para o palco?

Somos só nós. Nós, os quatro, com mais 20 vozes. Este disco não tem guitarras, baterias, pelo menos assumidamente, por isso não vamos levar os músicos que nos costumam acompanhar. Não fazia sentido irmos para o palco com uma banda tradicional. Somos mesmo só nós. Os meninos nas eletrónicas e eu na voz acompanhada por 20 cantores brilhantes. Como estamos a fazer um circuito de teatros e auditórios não podemos levar um coro de 50 vozes. Creio que o som não seria o que desejaríamos. Encurtámos e optámos por levar 20 pessoas para o palco que, na minha opinião, vão atuar num cenário muito bonito. Fizemos questão que as vozes sobressaíssem no palco. Quisemos que fosse o elemento principal. Além do coro, temos outro tipo de "atividades" para abrilhantar o espetáculo, como projeções e esse tipo de coisas. (risos) 

Como é que te sentes no palco, a cruzar a tua voz com as 20 vozes do coro?

É uma força incrível sobretudo nas músicas mais intensas, com um lado mais negro e com aquela tensão absoluta. É uma emoção, uma adrenalina. Um dos grandes prazeres que um músico tem na vida é aquela hora e meia em cima do palco. É para essa hora e meia que trabalhamos. Independentemente do número de vozes, a adrenalina está sempre lá, mas ver o resultado a soar com grandiosidade, que, no fundo, é isso que este coro representa, provoca-me borboletas na barriga. 

Tocar este disco ao vivo celebra que os Gift são em 2022, mas creio que também celebra a vossa atitude eternamente rebelde e livre enquanto banda. É uma atitude permanente para ser celebrada… 

Sim. A atitude permanece. Há uma canção que diz: 'só sei que aqui regressei'. É um bocado isso. Aconteça o que acontecer. Façamos os discos que fizermos, vamos sempre regressar aos palcos e ao público que nos acompanha há tanto tempo. Vamos sempre celebrar com as pessoas aquilo que criamos em casa. O melhor de um disco é quando o podemos tocar ao vivo. Sim. É uma celebração.    

Próximas datas dos concertos:

01 de dezembro - Casa da Música - Porto
02 de dezembro - Centro Cultural de Belém - Lisboa
10 de dezembro - Teatro Municipal Bragança
17 de dezembro - Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre