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Ana Bacalhau: "a liberdade é o maior e o primeiro dos valores humanos. Assim ela nos saiba guiar a bom porto, quando a tivermos de volta"

A cantora Ana Bacalhau partilhou connosco algumas reflexões sobre a nova realidade que estamos a viver e contou-nos como é que está a viver esta fase de quarentena mundial.

Ana Bacalhau: "a liberdade é o maior e o primeiro dos valores humanos. Assim ela nos saiba guiar a bom porto, quando a tivermos de volta"

 

Os dias sucedem-se à velocidade da Luz. Como bem sabem os pais de crianças pequenas, são elas quem nos dita as rotinas, desde o momento em que acordam até ao momento em que adormecem.

Cá entre nós, que somos 3, estipula-se que de manhã, enquanto um fica com a Luz a brincar, o outro tem uma hora para si. Depois troca-se. A seguir, o almoço, com a sua dose de birra de sono, mesmo a pedir a sesta que vem a seguir. Lanche, brincadeira, mais birras de sono, banho, jantar e cama. Muito jogo de cintura para se poder ir trabalhando (que é como quem diz, ir gerindo os cancelamentos e adiamentos de concertos para este ano, uma vez que toda a área cultural ficou sem actividade pelo menos até ao fim do Verão, mas, provavelmente, até bem mais tarde do que isso) e folgando, aproveitando a sesta e o sono da cachopa para arejar a cabeça seja criando, seja vendo/lendo/ouvindo as criações de outros. É engraçado como sempre se tem achado a Cultura uma coisa pouco vital, mas é ela quem nos vai ajudando a salvar a sanidade mental por estes dias de cativeiro.

Ver as notícias, sempre com muita parcimónia e presença de espírito. É que as informações sucedem-se a uma velocidade tal e contradizem-se com tamanha facilidade que o melhor é pegar nelas com pinças, desinfectar com cuidado e só depois de muito bem lavadas, espremer-lhes o sumo para ver se sai alguma coisa de importante.

Não tenho andado à procura de um significado para isto tudo. Nem de projecções futuras que aliviem o sofrimento de hoje. Porque se começo a misturar sentimentos e quando sofrer meter-me a achar que está tudo bem e tudo vai ficar bem, então quando estiver tudo bem e eu andar feliz, aquilo que não sofri na altura devida vai voltar para me estragar a festa.

Tudo isto para confessar que não tenho aderido muito (ou nada) às projecções de como será a vida pós-cativeiro, muito menos tenho pensado que tudo isto terá sido para o mundo mudar de forma positiva. Nenhuma mudança positiva deveria precisar de contagens diárias de mortos, mas isso sou eu às voltas com o meu idealismo ingénuo.

Não sei para que lado o mundo apontará depois de tudo isto, ou melhor, no seguimento de tudo isto. Sei, sim, que cada um de nós vai sair mudado e muito. É impossível que uma coisa assim não nos mude. E sei que se mudam as pessoas, mudará o mundo, claro.

Estranhamente, essa indefinição de caminho a seguir é aquilo que me enche o peito com alguma esperança. Como criativa, sei que a folha em branco é a promessa de obra e que tudo é possível. A maior liberdade que existe. Nós temos o poder e temos a necessidade. Veremos onde nos leva a vontade.

A mim, o cativeiro confirma-me algo que sempre intui: a liberdade é o maior e o primeiro dos valores humanos. Assim ela nos saiba guiar a bom porto, quando a tivermos de volta.

Para já, um abraço forte a todos os doentes, aos que choram os seus mortos, aos que estão na linha da frente e a todos os que permanecem estoicamente a cumprir o seu único e maior dever: ficar em casa, que é, simultaneamente o nosso cativeiro, a nossa salvação e a promessa da nossa liberdade.

Ana Bacalhau